Por Luciana Messeder
Quando falamos em prosa memorialística, é muito comum que venham à nossa mente seus gêneros mais consagrados, tais como a autobiografia, a biografia, as memórias, as cartas, os diários, os testemunhos e as confissões.
Embora não tenha como objetivo abarcar todos os gêneros citados acima, este ensaio se propõe ao estudo de algumas características presentes na autobiografia e no diário. Para tanto, utilizarei como referencial teórico o excelente livro de Philippe Lejeune (O pacto autobiográfico. De Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008), cuja leitura recomendo a todos que se interessem pelo tema.
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Primeiras considerações
É sabido que a identidade de toda e qualquer pessoa se constitui em narrativas. Organizar a matéria caótica de uma vida, os emaranhados de tempos, pessoas, lugares, sentimentos e experiências é o desafio colocado ao sujeito que se propõe narrar sua existência.
O trabalho com a memória situa-se entre o tempo da escrita (presente) e o tempo narrado (passado), podendo, muitas vezes, tornar-se uma árdua batalha. O mergulho no passado está sempre sujeito a enganos, confusões, distorções, bem como esquecimentos (conscientes ou inconscientes).
Nesse sentido, em primeiro lugar, a prosa memorialística deve ser tomada como uma construção, na qual o autor seleciona fatos, organizando-os de modo a contar sua história. Em segundo lugar, o texto memorialístico, por sua própria natureza, deve esclarecer certas questões centrais à sua constituição: quem nos fala, de onde, por que, como e o que nos fala.
A autobiografia
Segundo Philippe Lejeune (2008), a autobiografia é uma narrativa retrospectiva em prosa que o narrador faz de fatos marcantes de sua vida. Nesse sentido, o narrador deve ser uma pessoa real, pois na autobiografia o leitor espera que o horizonte de verdade seja pertinente. Além disso, para que haja autobiografia é necessário que a fórmula autor = narrador = personagem seja respeitada.
Ainda de acordo com o autor, o “pacto autobiográfico” é uma espécie de contrato entre o leitor e o autor de uma autobiografia, que se manifesta já na capa do livro:
“É, portanto, em relação ao nome próprio que devem ser situados os problemas da autobiografia. (...) É nesse nome que se resume toda a existência do que chamamos de autor: única marca no texto de uma realidade extratextual indubitável, remetendo a uma pessoa real, que solicita, dessa forma, que lhe seja em última instância, atribuída a responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito.” (Lejeune, P.: 2008, p. 23)
Dessa maneira, uma autobiografia sem uma capa que a identifique, não possui a marca que nos leve a concluir que estamos lendo uma história verídica.
O diário
O diário compartilha muitas semelhanças com a autobiografia definida anteriormente por Lejeune. Tal como a autobiografia, o diário possui a seguinte estrutura: identidade do narrador = identidade do personagem principal = identidade do autor.
Conforme já foi dito, a posição adotada pelo narrador da prosa memorialística é a perspectiva retrospectiva da narrativa. No entanto, nem todo texto que tenha tal perspectiva, é passível de verificação. Daí ressaltarmos mais uma característica própria da autobiografia que é comum ao diário:
“Em oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são textos referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, eles se propõem a fornecer informações a respeito de uma “realidade” externa ao texto a se submeter portanto a uma prova de verificação.” (Idem, p. 36)
“Vizinho” da autobiografia, o diário é um gênero constituído por certas particularidades, tais como: sua relação com o tempo, seu caráter fragmentado e sua utilidade.
Sobre sua peculiar relação com o tempo, podemos salientar que o diário, como o próprio nome nos diz, é uma forma de escrita cotidiana: sua matéria é o dia-a-dia e, por isso, ele reflete sucessivamente o presente. Tal relação com o tempo torna-o, para utilizarmos as expressões de Lejeune, uma “lista de dias” e uma “série de vestígios datados”: vestígios – porque referem-se ao seu caráter manuscrito e, por extensão, à caligrafia da pessoa que o escreveu e, até mesmo, a outros vestígios somados a este “vestígio original”, como flores secas, papéis etc. – com um suporte próprio, normalmente um caderno [1]. Além disso, a base de um diário é a data e, comumente, essa informação é a primeira a ser inserida na página. Ainda sobre a questão da data, é interessante observar uma importante distinção entre diário e autobiografia:
“(...) Um diário sem data, a rigor, não passa de uma simples caderneta. A datação pode ser mais ou menos precisa ou espaçada, mas é capital. Uma entrada no diário é o que foi escrito num certo momento, na mais absoluta ignorância quanto ao futuro, e cujo conteúdo não foi com certeza modificado. (...) Quando soa meia-noite não posso mais fazer modificações. Se o fizer, abandono o diário para cair na autobiografia.” (Ibdem, p. 260)
Seu caráter fragmentado fica visível não só pelas diferentes entradas, mas também pelos diversos temas que, por se espelharem no cotidiano, tornam-se eles próprios imprevisíveis. O diário é o espaço da escrita íntima (do “eu” para ele mesmo), cujo conteúdo, muitas vezes secreto, também é destinado, num primeiro momento, a quem o escreve.
Dentre as utilidades possíveis de um diário, Lejeune menciona as seguintes: a conservação da memória – o escritor pode querer no futuro reencontrar elementos do seu passado –; sobrevivência – o escritor pode também querer deixar seu legado para ser lembrado pelas gerações futuras –; desabafo; autoconhecimento; resistir às adversidades da vida – ou até mesmo a situações-limite, como a vivenciada por Anne Frank –; pensar – alguns escritores gostam de manter um diário para acompanharem seus processos de criação – ; e, por fim, escrever – alguém que goste simplesmente de escrever e tem prazer nisso.
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Autobiografia e diário são gêneros diferentes, mas possuem em comum o fato de trabalharem com uma forma específica de narrativa (a prosa) e remeterem a uma temporalidade inscrita no campo da memória (o passado), tendo como eixo norteador o relato de vida de um “eu”. E são, justamente, essas características que os fazem compartilhar a denominação “prosa memorialística”.
Notas:
[1] Convém ressaltar que me refiro aqui a uma forma manuscrita de texto, mas que nada impede de incluir nesta categoria, apesar do suporte diferente, os blogs.
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