quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Outra surpresa!!!

Queridos,
tinha acabado de postar o cineminha literário II e resolvi namorar um pouco meu exemplar Poesia completa e prosa, de Manuel Bandeira (chique, né?), quando encontrei a crônica que M.B. fez para o vídeo/documentário que está no youtube!
Não resisti e digitei tudo (ufa!).
Bom, então, eis o meu presente de Natal para vocês:
Fui filmado
Primeiro vieram o diretor e o seu assistente. Para estudar o local, cujas dimensões tornavam a filmagem particularmente difícil. Começou então um trabalho que me pareceu penoso, misterioso, minucioso. Eram medidas com trena, miradas por um instrumentozinho bonito chamado “visor”, deslocamentos de móveis. De uma vez que entrei na cozinha,onde o diretor e o assistente agiam, tive a impressão das primeiras horas depois de um terremoto ou da explosão de uma bomba de hidrogênio. Nesses deslocamentos o que mais me invocou foi a instabilidade de minha torradeira elétrica. Um dia estava aqui, outro dia ali, depois acolá. E eu que pensava que a torradeirazinha era a coisa mais qualquer deste mundo!UMA PERSONAGEM. Respeito-a agora como tal. O diretor e o assistente traziam sempre uns caderninhos, onde faziam cálculos e cálculos.
Afinal chegou o dia de filmar. Entraram-me apartamento adentro umas malas, umas tripeças, refletores, cabos de transmissão elétrica, o diabo. Tudo isso passou a morar na minha sala de visitas com um ar de perfeita e irremovível felicidade. A equipe de operadores era agora completa: além do diretor e do assistente, havia o gerente de produção débrouillard e simpaticão, a me tratar com desvelo de uma ba para com seu garotinho, o camera-man, com um ar de jovem arquiteto construtor de Brasílias; o fotógrafo, que imediatamente tentou converter-me ao espiritismo. O que mais me assombrou nessa gente foi a sua paciência. Aturavam impassíveis as vicissitudes mais inesperadas. Qualquer tomadinha à toa, coisa que dura uns segundos, leva horas a ser preparada. Eis que tudo estando pronto para rodar, o sol desaparece (ou aparece, é o mesmo), ou numa cena de exterior, no meu famoso pátio, surge uma turma de garis para varrê-lo, e como a imundície lá é sempre grande, o fiscal da prefeitura faz parar tudo, porque “aquilo iria depor contra a sua repartição”.
E a minha parte nisso tudo? De amargar. Pior do que posar para o Celso Antônio. Há que repetir cada tomadinha uma porção de vezes.Vários ensaios e vários a valer, e vale tudo! Ainda tenho nos ouvidos, ai tão surdinhos! as ordens de comando do diretor: “Atenção! Câmara! AÇÃO!” Leitores que nunca vistes fazer um filme, ainda que um simples documentário de oito minutos, como este meu, sabei que uma fita não é, que esperança, essa escorrida e escorreita continuidade que apreciamos prazerosamente nas salas de cinema: é, sim, uma seqüência de tomadas de segundos, cada uma das quais se leva horas a compor com mil atenções especiais, e basta que não se atenda a um detalhe mínimo, para pôr tudo a perder. Eu tinha muita pena de ator, que considero profissão duríssima. Agora passei a minha pena para os profissionais do cinema. Para se meter numa e noutra vida é preciso ter paixão pela coisa, ser tarado. Como meu afilhado de crisma, Joaquim Pedro, a quem desde já perdôo as intermináveis horas que me fez bancar o astro de cinema. [30.IX.1959]
(Bandeira, Manuel. In: Andorinha, Andorinha,1966)
Então, o que me dizem?

Que tal um cineminha literário? Parte II

Queridos,
ano passado, quando postei “Que tal um cineminha literário?”, http://parameusalunos.blogspot.com/2008/08/que-tal-um-cineminha-literrio.html , senti falta de um vídeo sobre Manuel Bandeira. Lembro-me de ter procurado muito e não ter encontrado nenhum material que considerasse realmente interessante.
Não é que para minha surpresa isso mudou? Estava um dia desses garimpando vídeos no youtube e encontrei um verdadeiro tesouro! Trata-se de um vídeo (“O habitante de Pasárgada”) que faz parte do DVD "Encontro Marcado com o cinema de Fernando Sabino e David Neves". Vale a pena conferir! O endereço é http://www.youtube.com/watch?v=acWHzVBs394
Bom, nada melhor do que um poema de Bandeira para encerrar este post, né?
Belo Belo
Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero
(Petrópolis, fevereiro de 1947, In: Belo Belo, 1948)
Então, o que me dizem?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Autobiografia e Diário: algumas considerações

Por Luciana Messeder
                              
     Quando falamos em prosa memorialística, é muito comum que venham à nossa mente seus gêneros mais consagrados, tais como a autobiografia, a biografia, as memórias, as cartas, os diários, os testemunhos e as confissões.
     Embora não tenha como objetivo abarcar todos os gêneros citados acima, este ensaio se propõe ao estudo de algumas características presentes na autobiografia e no diário. Para tanto, utilizarei como referencial teórico o excelente livro de Philippe Lejeune (O pacto autobiográfico. De Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008), cuja leitura recomendo a todos que se interessem pelo tema.
***
Primeiras considerações


É sabido que a identidade de toda e qualquer pessoa se constitui em narrativas. Organizar a matéria caótica de uma vida, os emaranhados de tempos, pessoas, lugares, sentimentos e experiências é o desafio colocado ao sujeito que se propõe narrar sua existência.
O trabalho com a memória situa-se entre o tempo da escrita (presente) e o tempo narrado (passado), podendo, muitas vezes, tornar-se uma árdua batalha. O mergulho no passado está sempre sujeito a enganos, confusões, distorções, bem como esquecimentos (conscientes ou inconscientes).
Nesse sentido, em primeiro lugar, a prosa memorialística deve ser tomada como uma construção, na qual o autor seleciona fatos, organizando-os de modo a contar sua história. Em segundo lugar, o texto memorialístico, por sua própria natureza, deve esclarecer certas questões centrais à sua constituição: quem nos fala, de onde, por que, como e o que nos fala.

A autobiografia

Segundo Philippe Lejeune (2008), a autobiografia é uma narrativa retrospectiva em prosa que o narrador faz de fatos marcantes de sua vida. Nesse sentido, o narrador deve ser uma pessoa real, pois na autobiografia o leitor espera que o horizonte de verdade seja pertinente. Além disso, para que haja autobiografia é necessário que a fórmula autor = narrador = personagem seja respeitada.
Ainda de acordo com o autor, o “pacto autobiográfico” é uma espécie de contrato entre o leitor e o autor de uma autobiografia, que se manifesta já na capa do livro:
“É, portanto, em relação ao nome próprio que devem ser situados os problemas da autobiografia. (...) É nesse nome que se resume toda a existência do que chamamos de autor: única marca no texto de uma realidade extratextual indubitável, remetendo a uma pessoa real, que solicita, dessa forma, que lhe seja em última instância, atribuída a responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito.” (Lejeune, P.: 2008, p. 23)
Dessa maneira, uma autobiografia sem uma capa que a identifique, não possui a marca que nos leve a concluir que estamos lendo uma história verídica.

O diário

O diário compartilha muitas semelhanças com a autobiografia definida anteriormente por Lejeune. Tal como a autobiografia, o diário possui a seguinte estrutura: identidade do narrador = identidade do personagem principal = identidade do autor.
Conforme já foi dito, a posição adotada pelo narrador da prosa memorialística é a perspectiva retrospectiva da narrativa. No entanto, nem todo texto que tenha tal perspectiva, é passível de verificação. Daí ressaltarmos mais uma característica própria da autobiografia que é comum ao diário:
“Em oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são textos referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, eles se propõem a fornecer informações a respeito de uma “realidade” externa ao texto a se submeter portanto a uma prova de verificação.” (Idem, p. 36)
“Vizinho” da autobiografia, o diário é um gênero constituído por certas particularidades, tais como: sua relação com o tempo, seu caráter fragmentado e sua utilidade.
Sobre sua peculiar relação com o tempo, podemos salientar que o diário, como o próprio nome nos diz, é uma forma de escrita cotidiana: sua matéria é o dia-a-dia e, por isso, ele reflete sucessivamente o presente. Tal relação com o tempo torna-o, para utilizarmos as expressões de Lejeune, uma “lista de dias” e uma “série de vestígios datados”: vestígios – porque referem-se ao seu caráter manuscrito e, por extensão, à caligrafia da pessoa que o escreveu e, até mesmo, a outros vestígios somados a este “vestígio original”, como flores secas, papéis etc. – com um suporte próprio, normalmente um caderno [1]. Além disso, a base de um diário é a data e, comumente, essa informação é a primeira a ser inserida na página. Ainda sobre a questão da data, é interessante observar uma importante distinção entre diário e autobiografia:
“(...) Um diário sem data, a rigor, não passa de uma simples caderneta. A datação pode ser mais ou menos precisa ou espaçada, mas é capital. Uma entrada no diário é o que foi escrito num certo momento, na mais absoluta ignorância quanto ao futuro, e cujo conteúdo não foi com certeza modificado. (...) Quando soa meia-noite não posso mais fazer modificações. Se o fizer, abandono o diário para cair na autobiografia.” (Ibdem, p. 260)
Seu caráter fragmentado fica visível não só pelas diferentes entradas, mas também pelos diversos temas que, por se espelharem no cotidiano, tornam-se eles próprios imprevisíveis. O diário é o espaço da escrita íntima (do “eu” para ele mesmo), cujo conteúdo, muitas vezes secreto, também é destinado, num primeiro momento, a quem o escreve.
Dentre as utilidades possíveis de um diário, Lejeune menciona as seguintes: a conservação da memória – o escritor pode querer no futuro reencontrar elementos do seu passado –; sobrevivência – o escritor pode também querer deixar seu legado para ser lembrado pelas gerações futuras –; desabafo; autoconhecimento; resistir às adversidades da vida – ou até mesmo a situações-limite, como a vivenciada por Anne Frank –; pensar – alguns escritores gostam de manter um diário para acompanharem seus processos de criação – ; e, por fim, escrever – alguém que goste simplesmente de escrever e tem prazer nisso.
***
Autobiografia e diário são gêneros diferentes, mas possuem em comum o fato de trabalharem com uma forma específica de narrativa (a prosa) e remeterem a uma temporalidade inscrita no campo da memória (o passado), tendo como eixo norteador o relato de vida de um “eu”. E são, justamente, essas características que os fazem compartilhar a denominação “prosa memorialística”.
Notas:
[1] Convém ressaltar que me refiro aqui a uma forma manuscrita de texto, mas que nada impede de incluir nesta categoria, apesar do suporte diferente, os blogs.


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Clarice Lispector

Queridos,
recebi essas imagens hoje de um amigo e gostaria de compartilhá-las com vocês. São lindas, né?

Então, o que me dizem?

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Revista Eletônica do Vestibular (UERJ)

Queridos,
achei muito bacana essa publicação eletrônica da UERJ, por isso recomendo a leitura para vocês.
O endereço da revista, http://www.revista.vestibular.uerj.br/ , a partir de hoje, vai constar nos links sugeridos pelo Blog.
Para aqueles que estão prestando vestibular, um passeio pela revista é extremamente valioso. Para o pessoal de Letras, o colunista da revista é o professor, escritor e ensaísta Gustavo Bernardo, ou seja, uma boa leitura garantida.
A seguir, coloco um trecho da proposta editorial da revista para vocês:
"A Revista Eletrônica do Vestibular da Uerj é uma publicação online, de periodicidade quadrimestral, criada com o objetivo de estabelecer um canal permanente entre a universidade e o público do ensino médio em geral. Por meio da interatividade presente em todas as suas seções, alunos e professores poderão aprofundar o contato com a comunidade acadêmica. Seu conteúdo está estruturado por seções como colunas, entrevistas, carreiras e textos comentados. Além disso, as questões de prova do Vestibular Estadual são apresentadas com comentários das respectivas bancas elaboradoras."
Então, o que me dizem?

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Movimento Tropicalista

Por Luciana Messeder


Antecedentes

No ano de 1964 foi instalado no Brasil o regime militar e, com ele, um clima de insegurança e indefinições se instaurou no meio cultural e artístico, uma vez que as demonstrações de poder do novo regime, desde o início, configuraram-se de modo violento e arbitrário.
Para entendermos a dimensão dessas primeiras intervenções políticas, precisamos ter em mente que os debates que mobilizavam a sociedade brasileira pouco antes do golpe de 64 giravam em torno de questões extremamente polêmicas como reforma agrária, alfabetização em massa (e a conseqüente legitimação eleitoral de quase metade da população brasileira), modernização do país e novos rumos de sua política externa.
Tais discussões fervilhavam nos jornais da época e causavam “arrepios” nas classes mais conservadoras da sociedade. O medo do advento do comunismo, da aprovação da lei do divórcio, da instauração da reforma agrária etc., fazia com que essa parcela da população se mostrasse bastante incomodada e preocupada com o futuro do país. Aproveitando tal circunstância, as forças direitistas se mobilizaram e, numa estratégia defensiva, conseguiram, apelando para os valores tradicionais arraigados na classe média, a organização de passeatas, como as “marchas da família com Deus pela Liberdade”, que clamavam pela manutenção da ordem, pela integridade do país, bem como pela preservação de suas instituições e de suas tradições cristãs.
Assim, uma das primeiras medidas do governo Castelo Branco foi a de atender o clamor da pequena burguesia e demonstrar que o perigo comunista e anticlerical seria combatido de maneira eficaz. Os militares alegaram que ideologia esquerdizante havia crescido muito e que era preciso agir estratégica e vigorosamente para silenciar essa massa popular que ousava se organizar. Dessa forma, iniciaram-se as perseguições aos sindicalistas, operários, camponeses e militares insurgentes: era necessário e urgente massacrar toda e qualquer ameaça à “ordem” e ao “progresso” do país.
Se a primeira ação do novo governo foi o corte entre os movimentos populares, espantosamente desenvolvidos nos anos que antecederam o golpe, e os movimentos de esquerda que mantinham contato direto com esses grupos, torna-se interessante observar que, mesmo com a adoção de medidas repressivas e violentas já nos seus primeiros anos, o regime militar, para a surpresa de todos, poupou boa parte da intelectualidade de esquerda de classe média, formada por profissionais liberais (professores universitários, críticos, jornalistas, artistas etc.), permitindo, com algumas restrições, a circulação de suas idéias e de suas produções artísticas (que durante o período compreendido entre 1964-1968, irão experimentar um crescimento excepcional).
Será, portanto, nesse contexto de relativa liberdade artística que surgirão, no ano de 1967, as primeiras manifestações daquilo que se tornará conhecido por movimento tropicalista.

Movimento tropicalista: “Por que não?”

Em outubro de 1967, no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, durante as apresentações de Caetano Veloso e Gilberto Gil, figuras ainda pouco conhecidas do público e do meio artístico nacional, nascia o movimento tropicalista.
As canções “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, apresentadas naquela ocasião, traziam consigo uma série de procedimentos nunca vistos antes na música popular brasileira, tornando-as, assim, matéria de estranhamento para o público e para a crítica especializada.
Público e crítica possuíam em comum um horizonte de expectativas bem delimitado, pois no cenário musical da época, vigoravam duas grandes correntes musicais que além de rivalizarem no plano musical propriamente dito, davam forma também à polarização ideológica manifesta na sociedade brasileira: Direita X Esquerda.
Tudo o que não estivesse comprometido com uma política participante, engajada, era considerado de “Direita”. Assim, a corrente musical que ficou conhecida como Ie-Ie-iê era considerada deveras lírica e alienada. Nela estavam englobados artistas como Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, que faziam parte da chamada Jovem Guarda. As composições da “turma do Ie-ie-iê” eram influenciadas pelo rock-and-roll norte-americano e inglês e possuíam letras leves, divertidas, que retratavam o universo juvenil de forma swingada, agradável e dançante. A segunda corrente, representante da “Esquerda”, era engajada politicamente e suas canções eram marcadas por letras de protesto e de denúncia das misérias da realidade brasileira. Muitos artistas da época, tais como Geraldo Vandré, Elis Regina, Jair Rodrigues, Chico Buarque, Edu Lobo, dentre outros, vincularam-se à sua proposta engajada.
Dessa maneira, quando as canções de Caetano e Gil apareceram no Festival, essas duas correntes (e seus respectivos públicos na platéia) não entenderam nada. Perguntavam-se: o que era aquilo? Que pessoas estranhas e que músicas eram aquelas?!

“Alegria, alegria”

Quando Caetano Veloso surgiu no palco vestido com um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê (os artistas naquela época tinham o costume de se apresentar de smoking), acompanhado por um grupo de jovens cabeludos, vestidos de cor-de-rosa, carregando guitarras elétricas, a platéia iniciou uma vaia furiosa.
(Dica: Que tal uma pesquisa no youtube para assistir aos vídeos das apresentações de "Alegria, alegria" e de "Domingo no parque"? Vale a pena!)
Caetano e os Beat Boys ignoraram a recepção e rapidamente iniciaram a execução da música, que tinha como introdução uma série de acordes de guitarra elétrica. O público, confuso, fez silêncio.
“Alegria, alegria” era uma música que falava de leveza: um jovem caminhando à toa, “sem lenço e sem documento”, “num sol de quase dezembro”, sem grandes preocupações e com alguns desejos. (De acordo com Caetano Veloso, a música foi pensada desde o início como uma “anti-Banda”, numa referência à música ganhadora do Festival de 1966, composta por Chico Buarque. O compositor baiano decidiu contrapor à cidadezinha do interior de contornos oitocentistas aludida pela música de Chico Buarque, um aspecto cosmopolita com marcas do século XX).

Álbum Caetano Veloso (1968), que contém a primeira gravação de "Alegria, alegria"
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O cenário é urbano, o jovem caminha pela cidade, passa por “bancas de revista” e a cena corriqueira é reforçada por palavras que enfatizam o sentido de atualidade dos fatos políticos e sociais (“crimes”, “espaçonaves”, “guerrilhas”, “caras de presidentes”, “bandeiras”, “bombas”) e da sociedade de consumo e entretenimento (“Cardinales”, “grandes beijos de amor”, “Brigitte Bardot”, “bancas de revista”, “coca-cola”, “canção”, “televisão”). Tais palavras, enumeradas quase que de forma caótica, apresentam um mundo fragmentado, no qual a política e o aspecto social não ganham mais relevância que os indicadores da sociedade de consumo. No final da canção, percebemos que esses dois pólos continuam em pé de igualdade, pois possuem a mesma força e, assim, se neutralizam.
O jovem segue sua caminhada indiferente à tensão política X entretenimento, resoluto (“eu vou”), desejando talvez “cantar na televisão” e “seguir vivendo”. A canção termina com a pergunta “Por que não?” repetida duas vezes, que para o crítico Augusto de Campos significa um desabafo-desafio: Por que não inovar, misturar estilos e experimentar na música popular brasileira?

Álbum Gilberto Gil (1968), que contém a primeira gravação de "Domingo no parque".


Álbum Tropicália ou Panis et circensis (1968), dos Mutantes: criação coletiva.

Se analisarmos algumas músicas seminais do movimento, tais como “Domingo no parque”, “Panis et circencis”, dentre outras, tendo em mente o contexto sócio-histórico-musical da época, perceberemos que o movimento tropicalista representou muito mais do que a criação de músicas e arranjos inovadores para o seu tempo.
Os tropicalistas extrapolaram o plano musical ao colocar em suas letras de música reflexões atualíssimas sobre Brasil, identidade nacional, valores tradicionais, juventude, dentre outros temas por eles abordados, tornando possível o diálogo entre os diferentes setores da sociedade. Suas músicas mostram o impasse entre as polarizações da época (direita X esquerda) e, por conseguinte, o empobrecimento da discussão que se efetuava no país na segunda metade da década de 1960.
Como uma brisa revigorante, o movimento tropicalista vai arejar o cenário intelectual brasileiro, superando tal impasse pelo viés da música comercial, da cultura pop, do humor e do experimentalismo.
As músicas tropicalistas, no fundo, tratam de um mesmo tema: a questão da liberdade. Uma liberdade plena que na proposta tropicalista deve ser conquistada em todos os níveis: estético, político, econômico, comportamental e sexual.