Por Luciana Messeder
Antecedentes
No ano de 1964 foi instalado no Brasil o regime militar e, com ele, um clima de insegurança e indefinições se instaurou no meio cultural e artístico, uma vez que as demonstrações de poder do novo regime, desde o início, configuraram-se de modo violento e arbitrário.
Para entendermos a dimensão dessas primeiras intervenções políticas, precisamos ter em mente que os debates que mobilizavam a sociedade brasileira pouco antes do golpe de 64 giravam em torno de questões extremamente polêmicas como reforma agrária, alfabetização em massa (e a conseqüente legitimação eleitoral de quase metade da população brasileira), modernização do país e novos rumos de sua política externa.
Tais discussões fervilhavam nos jornais da época e causavam “arrepios” nas classes mais conservadoras da sociedade. O medo do advento do comunismo, da aprovação da lei do divórcio, da instauração da reforma agrária etc., fazia com que essa parcela da população se mostrasse bastante incomodada e preocupada com o futuro do país. Aproveitando tal circunstância, as forças direitistas se mobilizaram e, numa estratégia defensiva, conseguiram, apelando para os valores tradicionais arraigados na classe média, a organização de passeatas, como as “marchas da família com Deus pela Liberdade”, que clamavam pela manutenção da ordem, pela integridade do país, bem como pela preservação de suas instituições e de suas tradições cristãs.
Assim, uma das primeiras medidas do governo Castelo Branco foi a de atender o clamor da pequena burguesia e demonstrar que o perigo comunista e anticlerical seria combatido de maneira eficaz. Os militares alegaram que ideologia esquerdizante havia crescido muito e que era preciso agir estratégica e vigorosamente para silenciar essa massa popular que ousava se organizar. Dessa forma, iniciaram-se as perseguições aos sindicalistas, operários, camponeses e militares insurgentes: era necessário e urgente massacrar toda e qualquer ameaça à “ordem” e ao “progresso” do país.
Se a primeira ação do novo governo foi o corte entre os movimentos populares, espantosamente desenvolvidos nos anos que antecederam o golpe, e os movimentos de esquerda que mantinham contato direto com esses grupos, torna-se interessante observar que, mesmo com a adoção de medidas repressivas e violentas já nos seus primeiros anos, o regime militar, para a surpresa de todos, poupou boa parte da intelectualidade de esquerda de classe média, formada por profissionais liberais (professores universitários, críticos, jornalistas, artistas etc.), permitindo, com algumas restrições, a circulação de suas idéias e de suas produções artísticas (que durante o período compreendido entre 1964-1968, irão experimentar um crescimento excepcional).
Será, portanto, nesse contexto de relativa liberdade artística que surgirão, no ano de 1967, as primeiras manifestações daquilo que se tornará conhecido por movimento tropicalista.
Em outubro de 1967, no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, durante as apresentações de Caetano Veloso e Gilberto Gil, figuras ainda pouco conhecidas do público e do meio artístico nacional, nascia o movimento tropicalista.
As canções “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, apresentadas naquela ocasião, traziam consigo uma série de procedimentos nunca vistos antes na música popular brasileira, tornando-as, assim, matéria de estranhamento para o público e para a crítica especializada.
Público e crítica possuíam em comum um horizonte de expectativas bem delimitado, pois no cenário musical da época, vigoravam duas grandes correntes musicais que além de rivalizarem no plano musical propriamente dito, davam forma também à polarização ideológica manifesta na sociedade brasileira: Direita X Esquerda.
Tudo o que não estivesse comprometido com uma política participante, engajada, era considerado de “Direita”. Assim, a corrente musical que ficou conhecida como Ie-Ie-iê era considerada deveras lírica e alienada. Nela estavam englobados artistas como Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, que faziam parte da chamada Jovem Guarda. As composições da “turma do Ie-ie-iê” eram influenciadas pelo rock-and-roll norte-americano e inglês e possuíam letras leves, divertidas, que retratavam o universo juvenil de forma swingada, agradável e dançante. A segunda corrente, representante da “Esquerda”, era engajada politicamente e suas canções eram marcadas por letras de protesto e de denúncia das misérias da realidade brasileira. Muitos artistas da época, tais como Geraldo Vandré, Elis Regina, Jair Rodrigues, Chico Buarque, Edu Lobo, dentre outros, vincularam-se à sua proposta engajada.
Dessa maneira, quando as canções de Caetano e Gil apareceram no Festival, essas duas correntes (e seus respectivos públicos na platéia) não entenderam nada. Perguntavam-se: o que era aquilo? Que pessoas estranhas e que músicas eram aquelas?!
Quando Caetano Veloso surgiu no palco vestido com um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê (os artistas naquela época tinham o costume de se apresentar de smoking), acompanhado por um grupo de jovens cabeludos, vestidos de cor-de-rosa, carregando guitarras elétricas, a platéia iniciou uma vaia furiosa.
(Dica: Que tal uma pesquisa no youtube para assistir aos vídeos das apresentações de "Alegria, alegria" e de "Domingo no parque"? Vale a pena!)
Caetano e os Beat Boys ignoraram a recepção e rapidamente iniciaram a execução da música, que tinha como introdução uma série de acordes de guitarra elétrica. O público, confuso, fez silêncio.
“Alegria, alegria” era uma música que falava de leveza: um jovem caminhando à toa, “sem lenço e sem documento”, “num sol de quase dezembro”, sem grandes preocupações e com alguns desejos. (De acordo com Caetano Veloso, a música foi pensada desde o início como uma “anti-Banda”, numa referência à música ganhadora do Festival de 1966, composta por Chico Buarque. O compositor baiano decidiu contrapor à cidadezinha do interior de contornos oitocentistas aludida pela música de Chico Buarque, um aspecto cosmopolita com marcas do século XX).
Álbum Caetano Veloso (1968), que contém a primeira gravação de "Alegria, alegria"
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O cenário é urbano, o jovem caminha pela cidade, passa por “bancas de revista” e a cena corriqueira é reforçada por palavras que enfatizam o sentido de atualidade dos fatos políticos e sociais (“crimes”, “espaçonaves”, “guerrilhas”, “caras de presidentes”, “bandeiras”, “bombas”) e da sociedade de consumo e entretenimento (“Cardinales”, “grandes beijos de amor”, “Brigitte Bardot”, “bancas de revista”, “coca-cola”, “canção”, “televisão”). Tais palavras, enumeradas quase que de forma caótica, apresentam um mundo fragmentado, no qual a política e o aspecto social não ganham mais relevância que os indicadores da sociedade de consumo. No final da canção, percebemos que esses dois pólos continuam em pé de igualdade, pois possuem a mesma força e, assim, se neutralizam.
O jovem segue sua caminhada indiferente à tensão política X entretenimento, resoluto (“eu vou”), desejando talvez “cantar na televisão” e “seguir vivendo”. A canção termina com a pergunta “Por que não?” repetida duas vezes, que para o crítico Augusto de Campos significa um desabafo-desafio: Por que não inovar, misturar estilos e experimentar na música popular brasileira?
Álbum Gilberto Gil (1968), que contém a primeira gravação de "Domingo no parque".
Álbum Tropicália ou Panis et circensis (1968), dos Mutantes: criação coletiva.
Se analisarmos algumas músicas seminais do movimento, tais como “Domingo no parque”, “Panis et circencis”, dentre outras, tendo em mente o contexto sócio-histórico-musical da época, perceberemos que o movimento tropicalista representou muito mais do que a criação de músicas e arranjos inovadores para o seu tempo.
Os tropicalistas extrapolaram o plano musical ao colocar em suas letras de música reflexões atualíssimas sobre Brasil, identidade nacional, valores tradicionais, juventude, dentre outros temas por eles abordados, tornando possível o diálogo entre os diferentes setores da sociedade. Suas músicas mostram o impasse entre as polarizações da época (direita X esquerda) e, por conseguinte, o empobrecimento da discussão que se efetuava no país na segunda metade da década de 1960.
Como uma brisa revigorante, o movimento tropicalista vai arejar o cenário intelectual brasileiro, superando tal impasse pelo viés da música comercial, da cultura pop, do humor e do experimentalismo.
As músicas tropicalistas, no fundo, tratam de um mesmo tema: a questão da liberdade. Uma liberdade plena que na proposta tropicalista deve ser conquistada em todos os níveis: estético, político, econômico, comportamental e sexual.
2 comentários:
muito bom o seu artigo mostra mesmo o paralelo da epóca do movimento alienado a aquele que pensa,luta. podemos dizer que nada disso mudou até hoje,haha, excelente matéria continue assim!
Olá, Henrique!
obrigada e seja bem-vindo ao blog!
Um abraço,
Luciana
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