Por Luciana Messeder
RESUMO O escritor Cornélio Penna,
apesar de figurar em Histórias da Literatura Brasileira, continua sendo um
desconhecido. Sem antecedentes, filiações reconhecidas em nossa literatura e
com uma biografia marcada pela falta de eventos e pelo isolamento intelectual,
o autor de A menina morta figura à margem do sistema literário
brasileiro. O presente trabalho tem como objetivo apresentar o escritor
Cornélio Penna e os horizontes de expectativa de sua época. Dessa forma,
mostraremos as relações entre Cornélio Penna e sua época, passando pelo exame
do profundo vínculo entre o escritor e o passado imperial de sua família e, por
último, verificaremos a importância que essa espécie de “tempo perdido”
exerceu sobre sua produção ficcional.
Palavras-chave: Cornélio Penna, Biografia, História da Literatura
Brasileira, Ficção.
ABSTRACT The
writer Cornélio Penna, in spite of being included in various Histories of
Brazilian Literature, remains a stranger. Without predecessors, recognized
affiliations in our literature and a biography marked by the lack of great
events and intellectual isolation, the author of A menina morta [The dead girl] is an outsider to the Brazilian
literary system. This work aims at presenting the writer Cornélio Penna and the
horizons of expectations of his time. Therefore, we will show the relations
between Cornélio Penna and his time, passing by the review of the deep bond
between the author and the imperial past of his family, and reaching, at last,
the significance that this type of “lost time” has exerted on his fictional
production.
Key Words: Cornélio Penna, Biography, History
of Brazilian Literature, Fiction.
Cornélio Penna é, reconhecidamente, um dos
personagens mais ariscos da literatura brasileira e, como observou um estudioso
do escritor “À primeira vista, a vida de Penna é pouco ou nada ‘biografável’”
(Bessa, 2000, p. 88). Nesse sentido, mesmo a simples tarefa de escrever algumas
linhas sobre sua trajetória, já pode ser encarada como um empreendimento
desafiador.
No entanto, a ausência desse esforço comprometeria
qualquer tentativa de aproximação com a obra corneliana, pois como entender a
dissonância (de autor e obra) sem a compreensão do horizonte de expectativas de
seu tempo?
Assim, é preciso deixar claro que sem a pretensão de
escrever o “verbete” Cornélio Penna, faremos a partir de agora uma espécie de
viagem biográfica, uma vez que alguns episódios da vida do autor serão de suma
importância para a melhor compreensão de sua obra.
Dessa
maneira, fazendo uso de recortes de jornais da época, artigos e ensaios sobre o
autor, verificaremos: (a) sobre o que irá coincidir o crescente isolamento de
Cornélio Penna e (b) no que resultará a espécie de viagem melancólica
empreendida pelo escritor.
A perversão
do presente
Cornélio Penna era um jovem recém-formado em Direito quando
se mudou no ano de 1919 para o Rio de Janeiro. Começou sua vida profissional
trabalhando como jornalista, redator e ilustrador em periódicos cariocas, tais
como A Nação, O Combate, O Jornal e O Brasil. Nessa
época, passou a dedicar-se intensamente à carreira de pintor, realizando sua
primeira exposição no ano de 1923 (1º Salão da Primavera, Rio de Janeiro).
Augusto Frederico Schmidt o conheceu ainda nesses primeiros
anos na nova cidade, quando Cornélio trabalhava na redação de O Jornal e
era, segundo o poeta, um “recém-formado, indeciso sobre o seu destino, bacharel
e desenhista-pintor” (Schmidt, 1997, p. 206). Por intermédio das memórias de
Schmidt, vemos o jovem Cornélio levar uma vida social e intelectual ativa, pois
era visto com freqüência pelos amigos. Nesse tempo, ambos eram freqüentadores
de um círculo de artistas e boêmios que se reunia no Café Gaúcho,
estabelecimento localizado na rua Rodrigo Silva, que ficava ao lado da redação
em que Cornélio trabalhava. Mesmo assim, como nos atesta Schmidt, os
qualificativos “torturado, estranho, artista raro, misterioso, sombrio”
(Schmidt, 1997, p. 209) já faziam parte do rol de expressões que desde cedo
acompanhariam o artista.
Após tornar-se funcionário público, em 1926, Cornélio passou
a dividir seu tempo entre as artes plásticas e o trabalho como 3º Oficial do
Ministério da Justiça. No ano seguinte, mudou-se para a casa de sua tia
materna, Zeferina Hermeto Carneiro Leão, na Praia de Botafogo, onde permaneceu
até o ano de 1941. Viúva de Dr. Henrique Carneiro Leão, o Barão de Paraná,
Zeferina foi uma figura bastante querida pelo escritor (Cornélio a chamava de
vice-mãe) e uma grande incentivadora da carreira artística do sobrinho.
Em 1929, foi aceito por unanimidade como membro da Sociedade
Brasileira de Belas-Artes e, em junho do mesmo ano, escreveu sua “Declaração de
insolvência” que, publicada no jornal A Ordem, Rio de Janeiro,
comunicava o término de sua carreira de pintor. Durante entrevista a Ledo Ivo,
Cornélio elucidava o motivo de tal abandono:
Quem visse
um quadro devia vivê-lo para sempre, e sua memória não seria estática, visual,
mas sim dinâmica, criadora, projetando-se no futuro com a própria vida daquele
que o trazia em seu espírito, e não unicamente nos olhos. Convenci-me de que
não seria possível conseguir isso, e eu mesmo achei que tudo que fizera não
passava de literatura pintada, uma das coisas mais horríveis que se pode
imaginar (Ivo, 1958a, p. LXI).
Com a constatação de que era impossível alcançar por meio da
pintura a expressão artística desejada, Cornélio Penna, aos 33 anos, dava uma
guinada em sua carreira. Nascia, então, o romancista.
Antes, porém, de tratarmos da motivação inicial para a
feitura de seus romances, torna-se necessário o destaque de alguns episódios
biográficos. Acreditamos que tais acontecimentos nos oferecerão importantes
pistas para a compreensão de autor e obra.
Um dado de suma importância na trajetória de Cornélio Penna é
o seu progressivo desligamento do presente, uma espécie de exílio voluntário.
Por meio de textos assinados por contemporâneos do autor, torna-se bastante
nítido que a carreira de escritor foi acompanhada por um progressivo
afastamento da sociedade. Se na década de 1920, segundo o testemunho de
Schmidt, Cornélio freqüentava cafés e participava de discussões acaloradas, uma
década depois, esse tipo de exposição já se mostrava inconcebível. A partir da
década de 1930, teve início um crescente isolamento que foi prontamente notado
pelos articulistas da época:
[Cornélio
Penna] tem se conservado numa discreta atitude de afastamento dos círculos das
bellas artes, aparecendo só de raro em raro nas revistas e jornais, ele que, há
anos passados, enchia de uma beleza tão alta e amarga as páginas dos periódicos
mais em evidência no país (Beira-mar, 1931).
Cornélio
Pena, o desenhista de tão forte personalidade, de temperamento esquisito e
complicado [...] nunca mais surgiu nos meios literários, não vai às livrarias
nas horas de reunião dos escritores, não aparece sequer, no Salão de Bellas
Artes e esqueceu completamente o caminho das sociedades de arte e de letras (Beira-mar,
1934).
Nessa trajetória, tomamos o ano de 1935 como um marco na
biografia do escritor. Nele, dois importantes acontecimentos coincidem: a
comunhão no mosteiro de São Bento, marcando a volta à prática católica, e a
publicação de seu primeiro romance (Fronteira).
Sobre os reflexos do primeiro acontecimento, contamos com o
testemunho de Hamilton Nogueira:
Há pouco
mais de vinte anos converteu-se Cornélio Pena ao catolicismo. Foi uma conversão
integral. Uma opção definitiva. Ao epigramista temível de outros tempos,
seguiu-se um homem novo, tolerante para com os homens, mas de uma intolerância
absoluta quando os princípios cristãos estavam em discussão (Nogueira, 1958).
Ao tratar da conversão do escritor ao catolicismo, sua
declaração reforçava a mudança radical acarretada pelo episódio religioso: o
novo homem era também possuidor de um catolicismo ferrenho.
Quanto ao segundo acontecimento, sua estréia nas letras,
podemos dizer que Fronteira causou um relativo impacto na crítica de seu
tempo. As palavras de Ruth Pacheco – “um livro fora do comum [...] fora do
comum de nossa literatura toda ocupada com problemas psicológicos e sociais”
(Pacheco, 1936, p. 164) – parecem ser compartilhadas pelos articulistas da
época:
A reação da
crítica diante do romance foi excelente; nomes como Tristão de Athayde, Otávio
de Faria e Mário de Andrade falaram com entusiasmo sobre o estranho livro, que
vinha fazer uma curva completamente imprevista na linha tradicional do romance
brasileiro (Perez, 1955).
A curva imprevista do romance de Cornélio Penna seria dada
pela introdução do elemento fantástico que, na contramão do experimentalismo
lingüístico modernista, da ênfase realista do romance social nordestino e da
linguagem introspectiva e simbolista do romance católico, foi o verdadeiro
responsável pelo estranhamento da crítica. Os romances seguintes, como afirma o
crítico Fausto Cunha, serão motivados pela “consciência do autor de não ter
dito ainda o que desejava dizer” e pela “ânsia de surpreender a nota exata”
(Cunha, 1949a). O perfeccionismo e a maturidade do escritor seriam, então, os
responsáveis pela depuração do elemento fantástico que, em A menina morta,
já se encontrará reduzido à atmosfera fantasmal configurada nas páginas do
romance.
Mas, prossigamos em nosso trajeto biográfico. No ano seguinte
à publicação de Fronteira, a tia baronesa do escritor falece deixando
para o sobrinho uma herança que lhe permitiu, no ano de 1941, pedir demissão do
emprego no Ministério da Justiça e seguir para São Paulo, com a finalidade de
cuidar da mãe doente. Lá permaneceu até a morte de D. Francisca, em 1943, e, no
mesmo ano, então com 47 anos, conheceu e casou-se com Maria Odília de Queiroz
Matoso.
A partir do momento que não mais precisava do emprego,
retirou-se da vida pública e passou a dedicar-se integralmente ao ofício de
escritor. Acreditamos ser neste período o ápice de seu isolamento. Nesta época,
o autor abdicou, inclusive, do contato com amigos de longa data, como nos
confirma o testemunho de Augusto F. Schmidt:
Desde que
Penna se libertou do Ministério da Justiça [...] e pôde, em virtude de algumas
heranças, realizar o seu ideal de não fazer nada, desde que começaram os seus
anos de silêncio e, mesmo, um pouco antes, deixei de vê-lo com freqüência
(Schmidt, 1997, p. 210).
Colocava-se,
cada vez mais, à parte do burburinho intelectual e, quando perguntado por Ledo
Ivo por que não freqüentava os meios literários, o autor de pronto respondia:
“Porque não sou literato. Não se pode imaginar o verdadeiro horror que tenho
[...] de tomar atitudes literárias, de viver literariamente” (Ivo, 1958a, p.
LXVI).
O teor desse tipo de declaração numa época em que se
cultivavam os encontros nos cafés e nas livrarias – e aqui vale lembrar da
importância exercida por esses espaços que eram tidos como verdadeiros
catalisadores intelectuais de uma geração que se queria engajada (cf. Hallewell,
2005) – só fazia aumentar a excentricidade do escritor perante seus pares.
Para seus contemporâneos, a personalidade do escritor era
visivelmente fora dos padrões considerados normais: era tido como um tipo
misterioso e esquisitão. “O que me completou a compreensão da obra foi o homem.
Conhecia-lhe a legenda – era um esquisitão, que vivia fechado em sua casa –
verdadeiro museu sem ter contato com ninguém” (Perez, 1958).
Mesmo nos círculos mais íntimos, a aura enigmática se
mantinha. Augusto F. Schmidt, ao descrevê-lo, reforçava o descompasso entre o
modo de vida adotado por Cornélio Penna e sua própria época: “Jamais tive a
impressão de que ele fosse um contemporâneo, um homem de minha época, um homem
como os outros” (Schmidt, 1997, p. 206).
Assim, afastado da política, dos amigos e dos meios
literários, o escritor passou a levar uma vida ascética. Isolado de tudo e de
todos, não gostava de sair de casa, evitava falar de seus livros e detestava a
vida barulhenta das cidades. Seu dia-a-dia se resumia, então, à escrita de seus
romances, ao conserto e reparação de coisas antigas, às longas e silenciosas
caminhadas com a esposa e as idas à missa.
Em entrevista realizada no ano de 1951, o escritor comentou
sobre seu retiro espontâneo “da vida quotidiana” e “do convívio dos que
escrevem e dos que lêem” (Letras e Artes, 1951). O autor de A menina
morta, na mesma entrevista, contou que desejava, em sua casa, manter-se
distante do que chamava “eco do mundo”:
Em uma
época de primarismo político, de confusão concentracionária, de pretendida
ciência em busca de bombas mortíferas, quando todos ameaçam e ninguém executa,
tenho vontade de viver longe, em um lugar onde não chegue o eco do mundo
(Idem).
O retraimento,
provocado pelo desagrado com a realidade e com o seu tempo, fez com que o
escritor se entregasse vorazmente à nostalgia do tempo por ele cultuado: o
passado familiar [1].
Encontrava em
sua casa o que denominava “refúgio” e, nesse ambiente, cercado de móveis,
tapetes e relíquias familiares, o apaixonado colecionador de antigüidades
escrevia seus romances [2].
Assim, o escritor trocou o “eco do mundo” pelos ecos do
passado: “Em casa há alguns móveis antigos e às vezes ouço as histórias que
eles me contam. Uma poltrona, um velho quadro, uma lembrança qualquer do passado
me faz companhia e me oferece temas para meus livros” (Rey, 1955); “[...] eu
via neles [retratos e móveis] os gestos e os sentimentos de seus antigos
possuidores, que conheci já velhos e alguns apenas revivendo na lembrança
daquelas que representavam para mim todo um mundo desaparecido” (Rego,
1949). São esses objetos de
memória que evocam do passado familiar os gestos, os gostos, as imagens e as
histórias apreendidas e transmitidas no decorrer de tantas vidas.
De suas tias e avós, herdara as histórias da família nobre e
abastada do tempo do Império: um passado, não muito distante, repleto de
glórias, riquezas e tragédias. Das pesadas caixas de música, melodias suaves
reanimavam as vozes de sua infância que lhe contavam as histórias de índios
selvagens, escravos rebelados, superstições de pretas velhas, palácios
luxuosos, países distantes e casamentos de contos de fada. Histórias
entranhadas no jacarandá antigo, gravadas nos brasões dos antepassados: em cada
peça de família, fragmentos de vidas passadas e ruínas de um mundo
desaparecido.
As velhas fotografias de família faziam brotar imagens de
palmeiras imperiais, que cercavam a casa-grande e sinalizavam ao viajante o
fausto e a grandeza da fazenda de café. O luxo sombrio e austero dos moradores
da mansão era relembrado pelos móveis que rodeavam o autor.
Na atmosfera centenária da casa de Laranjeiras, os objetos de
culto ao passado familiar engendravam a matéria-prima de seus romances. Dentre
eles, via-se o retrato a óleo da menina que parecia dormir.
A pintura do “anjinho” de vestido branco e coroa de rosas
representava uma das tias maternas de Cornélio. Pintado por um artista francês
que se hospedara na fazenda do Cortiço, propriedade da família do escritor em
Sapucaia, interior do Estado do Rio de Janeiro, o quadro retratava a menina em
seu leito de morte e era uma das paixões do escritor. Para ele, foi escrito o
romance A menina morta:
[...]
Quando vivia solitário em minha casa, ela [a menina morta] me entristecia e
povoava meus dias com sua presença patética. Tinha o hábito de dizer que ela
‘vivia em mim’ e que um dia escreveria o seu romance [...] Sua presença
tornou-se quase real ao meu lado, e ouvi que murmurava muitas coisas em meus
sonhos (Penna, 1955).
A escrita para Cornélio tornava-se, então, parte de um
nostálgico empreendimento: através dela o escritor realizava uma viagem pela
memória da família semelhante à “viagem através da carne” de que nos fala o
poema “Retrato de família”, de Carlos Drummond de Andrade:
os
parentes mortos e vivos.
Já
não distingo os que se foram
dos
que restaram. Percebo apenas
a
estranha idéia de família
viajando
através da carne (Andrade, 1963, p. 59).
Pela via da memória, Cornélio Penna resgatava o passado
familiar que, como o poema, encontrava-se na tênue fronteira onde “memória e
presente mutuamente se enlaçam, se alimentam” (Costa Lima, 1968, pp. 221-22),
fronteira que o escritor passava a habitar e de onde retirava os elementos para
sua ficção. Nela, tempo, espaço e circunstâncias eram contaminados pela marca da
perda.
Sob o
signo da melancolia
Se pensarmos em uma lógica capaz de organizar a história de
vida de Cornélio Penna, encontraremos a da melancolia. É pela experiência da
perda que os principais acontecimentos da vida do escritor se organizam: perdas
familiares, perda de ambições, perda de saúde.
É também pela via
melancólica que Penna se identifica com o mundo que o cerca: “O meu dia, todos
os meus dias, assim como toda minha vida agora, resume-se a uma só palavra:
ocaso” (Penna, s/da).
Tradução do instante
suspenso, o crepúsculo, imagem-síntese evocada pelo autor, é um signo
melancólico por excelência. É ele que simboliza a “hora da saudade e da
melancolia” (Chevallier, 1998, p. 300). Representação do espaço fronteiriço,
onde as divisas da noite e do dia se misturam, o crepúsculo é o instante no
qual passado e presente deixam de ser distinguidos. Habitado pelo escritor, ele
é o local dos fantasmas familiares. Uma espécie de refúgio em que Cornélio
podia contemplar a beleza nostálgica de um passado idealizado: um tempo
anterior às perdas que marcariam para sempre a trajetória de sua família.
Nascido a 20 de fevereiro
de 1896, em Petrópolis, Cornélio de Oliveira Penna foi o quinto filho do casal
Manuel Camilo de Oliveira Penna, médico, e D. Francisca de Paula Marcondes de
Oliveira Penna. Tinha um ano de idade quando seu pai se transferiu, com toda a
família, para Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais. Dr. Manuel Camilo, filho do
respeitado Coronel João Camilo de Oliveira e de Maria Rosa de Oliveira Pena,
irmã do presidente Afonso Pena, nasceu na imponente Fazenda do Girau,
propriedade que mais tarde se tornaria sede da mineração da Itabira Iron. Era o
filho ilustre que retornava à pequena cidade mineradora com a finalidade de lá
se estabelecer e montar sua clínica.
Após um ano na nova
cidade, uma tragédia familiar se desencadeou: a morte súbita de seu pai, logo
seguida por mais duas importantes perdas (avó e tia maternas). Órfão aos dois
anos de idade, mudou-se com a família para Pindamonhangaba, onde permaneceram
por um curtíssimo tempo, pois, ainda no ano de 1901, a família seguiu para
Campinas, cidade em que o escritor passou sua infância e adolescência, na qual
também ocorreu outro episódio dramático: a perda da visão direita enquanto
brincava com um canhão. Referindo-se aos anos conturbados que marcaram sua
infância, o escritor rememorou a antiga e triste história materna:
Tendo
casado em Paris, seguira para Itabira do Mato Dentro, e, depois de oito anos de
felicidade, meu pai morrera subitamente. Desorientada, tentou refugiar-se junto
de minha avó, que ficara em Honório Bicalho, onde estava a mineração de ouro de
minha família materna, e, na estação, soube que ela falecera na véspera. Quis
então ir para junto da irmã mais velha e sua madrinha, em São Paulo, mas esta
também morreu no mesmo mês... e assim se fechara
sobre ela uma lousa inviolável de renúncia e de tristeza, que nunca podemos
vencer, durante tantos anos de sobrevivência (Condé, 1953, apud Adonias
Filho, 1958, p. XXVI).
A mãe, D. Francisca, é recordada pelo escritor como uma figura frágil, de
olhos distantes e passos silenciosos. Cornélio relembrava também o espesso luto
que parecia envolver toda sua família numa espécie de sono profundo. Sobre a
infância o autor escrevia: “[...] minha infância, luta constante contra a
melancolia, a inquietação sem causa, o sentimento de culpa que eu tinha da
desgraça que pesaria sempre sobre o nosso lar, sem que eu o pudesse
conjurar...” (Penna, s/db).
Em suas entrevistas, o escritor afirmava ter sido uma criança triste e
solitária que, desde cedo, encontrou refúgio na leitura de folhetins e
romances. Segundo a reportagem de Renard Perez Cornélio “lia tudo que lhe
chegava às mãos, desde o ‘tico-tico’ a Perez Escrich e Alexandre Dumas” (Perez,
1955). [3]
O futuro escritor também adorava escutar as velhas histórias familiares
contadas pela mãe, histórias que o transportavam para um mundo desaparecido e
que lhe faziam companhia nos momentos de solidão:
[...] desde que me conheço, ouvia as histórias de Itabira, de
Pindamonhangaba e das fazendas de meus avós e tios [...] eu guardava tudo com
avidez, sem demonstrar como era funda a emoção que me provocavam aqueles
episódios sem uma ligação aparente entre eles, que eu recolhia e depois ligava
com um fio inventado por mim (Adonias Filho, 1958, p. XXXIX).
As lembranças de Itabira sempre exerceram uma forte influência na
trajetória de Cornélio Penna. Palco do drama familiar, a velha cidade
mineradora, também foi objeto de uma apaixonada admiração. Nas palavras de Carlos
Drummond de Andrade, o autor de A menina morta “nasceu, viveu e morreu
interiormente” (Andrade, 1958) em Itabira.
Em entrevista a Ledo Ivo, Cornélio Penna falava que a motivação
irresistível que o impulsionou para a feitura de Fronteira, seu début
nas letras, partiu do desejo de ver Itabira retratada em um romance:
[...]
a vida da cidade, o espírito belo e sombrio de seus habitantes, as histórias de
[...] invencível coragem no drama que tudo lá representa, tinham ficado
gravadas em meu cérebro e em meu coração de tal forma, toda minha vida, que só
pude me libertar de sua obsessão escrevendo. Pedi a muitos escritores que o
fizessem [...], mas não consegui interessar a nenhum deles, e assim foi que
escrevi Fronteira, que consegui publicar em 1935, e que representou para
mim apenas um desabafo, uma confidência, ou melhor, uma confissão pública, a
compreensão de Itabira (Ivo, 1958a, p. LXII).
No trecho que selecionamos,
Penna afirmava que a escrita do romance foi provocada por um desejo íntimo, um desabafo,
uma confidência, uma confissão pública de alguém que desejava ver
retratada a matéria que o obsedava. Pelo desejo de contar a história da cidade
estagnada, feita de ruínas e silêncios, de cuja atmosfera brotavam fantasmas,
recordações e história familiares, o autor encontrava a motivação inicial para
a escrita de seus romances.
Sua matéria ficcional,
portanto, emanava de um tempo familiar progressivamente habitado, de um passado
insistentemente rememorado que ganhava a forma da pequena cidade mineradora:
“Cornélio convertera Itabira em matéria mítica. Ela então se tornava o véu, que
não encontrava na tradição literária, indispensável para elaborar a realidade
de que não se desligava: a realidade do passado de suas tias e avós” (Costa
Lima, 2005, p. 20).
O mergulho nas memórias ancestrais, com o passar dos anos, tornava-se
mais profundo e fazia com que o autor, como já foi observado pelo crítico Luiz
Costa Lima, recuasse cada vez mais no tempo retratado por sua ficção.
Segundo o crítico, não só vemos o tempo histórico ser invertido, isto é,
retroceder gradualmente na cronologia de seus quatro romances, como também é
possível observarmos mudanças no que diz respeito à localização espacial de
suas narrativas, ou seja, o lugar onde a ação se desenrolará. Sobre esta última
característica da prosa corneliana, o crítico chama atenção para o fato de o
autor realçar progressivamente a fazenda como núcleo ficcional:
[...]
a cidadezinha [...] tende a diminuir de importância, até se converter, em A
menina morta, em mero lugar de passagem, Porto Novo, ao passo que a
fazenda, de ingresso mais tardio, tornar-se-á o ponto central com o Grotão.
Esta ordem diversa de precedência indica a direção da matéria ficcional
corneliana: direção ditada pela memória na (dolorosa) procura de chegar à
origem da razão (esquiva) da própria procura (Costa Lima, 2005, pp. 73-74).
Sabemos que as histórias
ouvidas na infância ofereciam a Cornélio Penna um material riquíssimo a ser
explorado ficcionalmente. Assim, nessa viagem ditada pela memória, a ficção
corneliana avançava até o passado distante de suas avós, de onde retirava os
elementos propulsores de sua ficção. Se em A menina morta acompanhamos
uma espécie de trabalho de antiquário, um trabalho paciente que reconstituía
com perfeição o cotidiano de uma fazenda de café escravocrata às margens do
Vale do Paraíba em seus tempos de prosperidade, também somos apresentados à
economia do texto corneliano e sua “incômoda riqueza”. O tempo de opulência –
sugerido nas páginas de A menina morta pelo desfile de móveis
aristocráticos, objetos de arte, louças gravadas com os brasões da família e
produtos importados da Europa – convive com o mal que atinge toda a comunidade
do Grotão.
Durante a narrativa,
acompanhamos os detalhes da vida cotidiana, as riquezas advindas do trabalho
escravo e a vida em ponto-morto das personagens da casa-grande, dados que nos
revelam o dia-a-dia em uma comunidade onde a tensão é permanente.
Assim, em A menina
morta somos apresentados a um universo apavorante. A viagem melancólica é
abortada: ao contrário de resultar em uma espécie de idade do ouro familiar, o
relato ficcional se torna sombrio e angustiante. O mergulho melancólico de
Cornélio Penna, como afirma o crítico Luiz Costa Lima, em vez de justificar a
melancolia, isto é, a mostrar fundada num passado louvável do ponto de vista
biográfico, a mostra assentada em um tempo de horror:
De alguém que vivia entre relíquias [...] e lembranças,
podia-se esperar que fosse um emérito melancólico, que ressaltasse as glórias
imperiais da família abastada. Alguém, em suma, que, vivendo dos restos da
passada fortuna expusesse as raízes de uma vida de luxo e riqueza. Em vez
disso, os fantasmas da memória se solidificam em um mundo monstruoso, em que a
ordem da próspera fazenda mal encobre o terror que circula pelas frestas,
quartos e vidraças (Costa Lima, 2005, p. 15).
Sobre a aparente
prosperidade do Grotão esconde-se um tempo de horror fundado na
irracionalidade, a escravidão, e é exatamente nesse ponto que vemos a originalidade
do escritor surpreender: sua ficção impele o leitor de A menina morta
para um tempo de opulência, que, na verdade, se revela como um mundo de
pesadelo.
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1958.
_____. “As vinte e quatro horas do romancista Cornélio Penna”. S/l, s/da.
_____. “A traição da língua”. S/l, s/db.
PEREZ, Renard. “Cornélio Pena – O homem e a obra”. In: Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 1º de março de 1958.
_____. “Escritores brasileiros contemporâneos – Cornélio Penna”. In: Correio
da Manhã, Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1955.
REGO, José Lins do. “Revelações de Cornélio Pena”. In: Tribuna de
Petrópolis, Petrópolis, agosto de 1949.
REY, Marcos. “A vida não tem enredo”. In: O Tempo. São Paulo, 20
de fevereiro de 1955.
SCHMIDT, Augusto Frederico: As Florestas. Páginas de memórias. 2ª
ed. Rio de janeiro: Topbooks, 1997.
NOTAS
[2] São várias as referências
encontradas acerca da residência do autor. Algumas ressaltam a estranha
atmosfera que fazia da moradia de Cornélio Penna uma mistura de convento e
museu: “A casa [...] lembrava um pequeno convento [...] Era uma atmosfera
tranqüila, sonolenta, indiferente ao que se passava lá fora” (Ivo, 1958b); os
objetos “davam à sala de entrada um ar bolorento de museu [e criavam] uma
atmosfera de romance inglês setecentista” (César, 1974); “Quando cheguei à sua
casa [...] senti que penetrava na própria atmosfera de seus romances” (Perez,
1958). Outras chamam a atenção para o fascínio do autor pelos objetos
familiares e suas histórias “[Cornélio] vive cercado de recordações naquela sua
casa de Laranjeiras onde, por assim dizer, o tempo parou, tamanha é a força da
‘voz dos outros tempos’ que ecoa em suas salas” (Rego, 1949); “Tudo o que
existe nas salas, quartos e corredores de sua residência tem uma história, que
nasce sempre de sua infância, da lembrança dos parentes mortos, alguns
enterrados em igrejas” (Ivo, 1945).
[3] Dentre
seus escritores preferidos na adolescência, Camilo Castelo Branco merece um
destaque especial, pois o escritor afirmava ter lido várias vezes as Novelas
do Minho. Ao lembrar das leituras vorazes desses anos, Cornélio costumava
contar com muita graça o impacto que lhe causara a leitura de Machado de Assis:
“Um dia li Quincas Borba e fiquei trêmulo, comovidíssimo, certo de que
era louco também” (Ivo, 1958a, p. LVII).