sexta-feira, 13 de julho de 2012

Cornélio Penna, um escritor dissonante



Por Luciana Messeder

RESUMO O escritor Cornélio Penna, apesar de figurar em Histórias da Literatura Brasileira, continua sendo um desconhecido. Sem antecedentes, filiações reconhecidas em nossa literatura e com uma biografia marcada pela falta de eventos e pelo isolamento intelectual, o autor de A menina morta figura à margem do sistema literário brasileiro. O presente trabalho tem como objetivo apresentar o escritor Cornélio Penna e os horizontes de expectativa de sua época. Dessa forma, mostraremos as relações entre Cornélio Penna e sua época, passando pelo exame do profundo vínculo entre o escritor e o passado imperial de sua família e, por último, verificaremos a importância que essa espécie de “tempo perdido” exerceu sobre sua produção ficcional.
Palavras-chave: Cornélio Penna, Biografia, História da Literatura Brasileira, Ficção.

ABSTRACT The writer Cornélio Penna, in spite of being included in various Histories of Brazilian Literature, remains a stranger. Without predecessors, recognized affiliations in our literature and a biography marked by the lack of great events and intellectual isolation, the author of A menina morta [The dead girl] is an outsider to the Brazilian literary system. This work aims at presenting the writer Cornélio Penna and the horizons of expectations of his time. Therefore, we will show the relations between Cornélio Penna and his time, passing by the review of the deep bond between the author and the imperial past of his family, and reaching, at last, the significance that this type of “lost time” has exerted on his fictional production.
Key Words: Cornélio Penna, Biography, History of Brazilian Literature, Fiction. 


Cornélio Penna é, reconhecidamente, um dos personagens mais ariscos da literatura brasileira e, como observou um estudioso do escritor “À primeira vista, a vida de Penna é pouco ou nada ‘biografável’” (Bessa, 2000, p. 88). Nesse sentido, mesmo a simples tarefa de escrever algumas linhas sobre sua trajetória, já pode ser encarada como um empreendimento desafiador. 

No entanto, a ausência desse esforço comprometeria qualquer tentativa de aproximação com a obra corneliana, pois como entender a dissonância (de autor e obra) sem a compreensão do horizonte de expectativas de seu tempo?

Assim, é preciso deixar claro que sem a pretensão de escrever o “verbete” Cornélio Penna, faremos a partir de agora uma espécie de viagem biográfica, uma vez que alguns episódios da vida do autor serão de suma importância para a melhor compreensão de sua obra. 

Dessa maneira, fazendo uso de recortes de jornais da época, artigos e ensaios sobre o autor, verificaremos: (a) sobre o que irá coincidir o crescente isolamento de Cornélio Penna e (b) no que resultará a espécie de viagem melancólica empreendida pelo escritor.  

 

A perversão do presente

Cornélio Penna era um jovem recém-formado em Direito quando se mudou no ano de 1919 para o Rio de Janeiro. Começou sua vida profissional trabalhando como jornalista, redator e ilustrador em periódicos cariocas, tais como A Nação, O Combate, O Jornal e O Brasil. Nessa época, passou a dedicar-se intensamente à carreira de pintor, realizando sua primeira exposição no ano de 1923 (1º Salão da Primavera, Rio de Janeiro).
Augusto Frederico Schmidt o conheceu ainda nesses primeiros anos na nova cidade, quando Cornélio trabalhava na redação de O Jornal e era, segundo o poeta, um “recém-formado, indeciso sobre o seu destino, bacharel e desenhista-pintor” (Schmidt, 1997, p. 206). Por intermédio das memórias de Schmidt, vemos o jovem Cornélio levar uma vida social e intelectual ativa, pois era visto com freqüência pelos amigos. Nesse tempo, ambos eram freqüentadores de um círculo de artistas e boêmios que se reunia no Café Gaúcho, estabelecimento localizado na rua Rodrigo Silva, que ficava ao lado da redação em que Cornélio trabalhava. Mesmo assim, como nos atesta Schmidt, os qualificativos “torturado, estranho, artista raro, misterioso, sombrio” (Schmidt, 1997, p. 209) já faziam parte do rol de expressões que desde cedo acompanhariam o artista.
Após tornar-se funcionário público, em 1926, Cornélio passou a dividir seu tempo entre as artes plásticas e o trabalho como 3º Oficial do Ministério da Justiça. No ano seguinte, mudou-se para a casa de sua tia materna, Zeferina Hermeto Carneiro Leão, na Praia de Botafogo, onde permaneceu até o ano de 1941. Viúva de Dr. Henrique Carneiro Leão, o Barão de Paraná, Zeferina foi uma figura bastante querida pelo escritor (Cornélio a chamava de vice-mãe) e uma grande incentivadora da carreira artística do sobrinho.
Em 1929, foi aceito por unanimidade como membro da Sociedade Brasileira de Belas-Artes e, em junho do mesmo ano, escreveu sua “Declaração de insolvência” que, publicada no jornal A Ordem, Rio de Janeiro, comunicava o término de sua carreira de pintor. Durante entrevista a Ledo Ivo, Cornélio elucidava o motivo de tal abandono:

Quem visse um quadro devia vivê-lo para sempre, e sua memória não seria estática, visual, mas sim dinâmica, criadora, projetando-se no futuro com a própria vida daquele que o trazia em seu espírito, e não unicamente nos olhos. Convenci-me de que não seria possível conseguir isso, e eu mesmo achei que tudo que fizera não passava de literatura pintada, uma das coisas mais horríveis que se pode imaginar  (Ivo, 1958a, p. LXI).

Com a constatação de que era impossível alcançar por meio da pintura a expressão artística desejada, Cornélio Penna, aos 33 anos, dava uma guinada em sua carreira. Nascia, então, o romancista.
Antes, porém, de tratarmos da motivação inicial para a feitura de seus romances, torna-se necessário o destaque de alguns episódios biográficos. Acreditamos que tais acontecimentos nos oferecerão importantes pistas para a compreensão de autor e obra.
Um dado de suma importância na trajetória de Cornélio Penna é o seu progressivo desligamento do presente, uma espécie de exílio voluntário. Por meio de textos assinados por contemporâneos do autor, torna-se bastante nítido que a carreira de escritor foi acompanhada por um progressivo afastamento da sociedade. Se na década de 1920, segundo o testemunho de Schmidt, Cornélio freqüentava cafés e participava de discussões acaloradas, uma década depois, esse tipo de exposição já se mostrava inconcebível. A partir da década de 1930, teve início um crescente isolamento que foi prontamente notado pelos articulistas da época:

[Cornélio Penna] tem se conservado numa discreta atitude de afastamento dos círculos das bellas artes, aparecendo só de raro em raro nas revistas e jornais, ele que, há anos passados, enchia de uma beleza tão alta e amarga as páginas dos periódicos mais em evidência no país (Beira-mar, 1931).

Cornélio Pena, o desenhista de tão forte personalidade, de temperamento esquisito e complicado [...] nunca mais surgiu nos meios literários, não vai às livrarias nas horas de reunião dos escritores, não aparece sequer, no Salão de Bellas Artes e esqueceu completamente o caminho das sociedades de arte e de letras (Beira-mar, 1934).
 
Nessa trajetória, tomamos o ano de 1935 como um marco na biografia do escritor. Nele, dois importantes acontecimentos coincidem: a comunhão no mosteiro de São Bento, marcando a volta à prática católica, e a publicação de seu primeiro romance (Fronteira).
Sobre os reflexos do primeiro acontecimento, contamos com o testemunho de Hamilton Nogueira:
Há pouco mais de vinte anos converteu-se Cornélio Pena ao catolicismo. Foi uma conversão integral. Uma opção definitiva. Ao epigramista temível de outros tempos, seguiu-se um homem novo, tolerante para com os homens, mas de uma intolerância absoluta quando os princípios cristãos estavam em discussão (Nogueira, 1958).

Ao tratar da conversão do escritor ao catolicismo, sua declaração reforçava a mudança radical acarretada pelo episódio religioso: o novo homem era também possuidor de um catolicismo ferrenho.
Quanto ao segundo acontecimento, sua estréia nas letras, podemos dizer que Fronteira causou um relativo impacto na crítica de seu tempo. As palavras de Ruth Pacheco – “um livro fora do comum [...] fora do comum de nossa literatura toda ocupada com problemas psicológicos e sociais” (Pacheco, 1936, p. 164) – parecem ser compartilhadas pelos articulistas da época:

A reação da crítica diante do romance foi excelente; nomes como Tristão de Athayde, Otávio de Faria e Mário de Andrade falaram com entusiasmo sobre o estranho livro, que vinha fazer uma curva completamente imprevista na linha tradicional do romance brasileiro (Perez, 1955).

A curva imprevista do romance de Cornélio Penna seria dada pela introdução do elemento fantástico que, na contramão do experimentalismo lingüístico modernista, da ênfase realista do romance social nordestino e da linguagem introspectiva e simbolista do romance católico, foi o verdadeiro responsável pelo estranhamento da crítica. Os romances seguintes, como afirma o crítico Fausto Cunha, serão motivados pela “consciência do autor de não ter dito ainda o que desejava dizer” e pela “ânsia de surpreender a nota exata” (Cunha, 1949a). O perfeccionismo e a maturidade do escritor seriam, então, os responsáveis pela depuração do elemento fantástico que, em A menina morta, já se encontrará reduzido à atmosfera fantasmal configurada nas páginas do romance.
Mas, prossigamos em nosso trajeto biográfico. No ano seguinte à publicação de Fronteira, a tia baronesa do escritor falece deixando para o sobrinho uma herança que lhe permitiu, no ano de 1941, pedir demissão do emprego no Ministério da Justiça e seguir para São Paulo, com a finalidade de cuidar da mãe doente. Lá permaneceu até a morte de D. Francisca, em 1943, e, no mesmo ano, então com 47 anos, conheceu e casou-se com Maria Odília de Queiroz Matoso.
A partir do momento que não mais precisava do emprego, retirou-se da vida pública e passou a dedicar-se integralmente ao ofício de escritor. Acreditamos ser neste período o ápice de seu isolamento. Nesta época, o autor abdicou, inclusive, do contato com amigos de longa data, como nos confirma o testemunho de Augusto F. Schmidt:

Desde que Penna se libertou do Ministério da Justiça [...] e pôde, em virtude de algumas heranças, realizar o seu ideal de não fazer nada, desde que começaram os seus anos de silêncio e, mesmo, um pouco antes, deixei de vê-lo com freqüência (Schmidt, 1997, p. 210).

Colocava-se, cada vez mais, à parte do burburinho intelectual e, quando perguntado por Ledo Ivo por que não freqüentava os meios literários, o autor de pronto respondia: “Porque não sou literato. Não se pode imaginar o verdadeiro horror que tenho [...] de tomar atitudes literárias, de viver literariamente” (Ivo, 1958a, p. LXVI).
O teor desse tipo de declaração numa época em que se cultivavam os encontros nos cafés e nas livrarias – e aqui vale lembrar da importância exercida por esses espaços que eram tidos como verdadeiros catalisadores intelectuais de uma geração que se queria engajada (cf. Hallewell, 2005) – só fazia aumentar a excentricidade do escritor perante seus pares.
Para seus contemporâneos, a personalidade do escritor era visivelmente fora dos padrões considerados normais: era tido como um tipo misterioso e esquisitão. “O que me completou a compreensão da obra foi o homem. Conhecia-lhe a legenda – era um esquisitão, que vivia fechado em sua casa – verdadeiro museu sem ter contato com ninguém” (Perez, 1958).  
Mesmo nos círculos mais íntimos, a aura enigmática se mantinha. Augusto F. Schmidt, ao descrevê-lo, reforçava o descompasso entre o modo de vida adotado por Cornélio Penna e sua própria época: “Jamais tive a impressão de que ele fosse um contemporâneo, um homem de minha época, um homem como os outros” (Schmidt, 1997, p. 206). 
Assim, afastado da política, dos amigos e dos meios literários, o escritor passou a levar uma vida ascética. Isolado de tudo e de todos, não gostava de sair de casa, evitava falar de seus livros e detestava a vida barulhenta das cidades. Seu dia-a-dia se resumia, então, à escrita de seus romances, ao conserto e reparação de coisas antigas, às longas e silenciosas caminhadas com a esposa e as idas à missa.
Em entrevista realizada no ano de 1951, o escritor comentou sobre seu retiro espontâneo “da vida quotidiana” e “do convívio dos que escrevem e dos que lêem” (Letras e Artes, 1951). O autor de A menina morta, na mesma entrevista, contou que desejava, em sua casa, manter-se distante do que chamava “eco do mundo”:

Em uma época de primarismo político, de confusão concentracionária, de pretendida ciência em busca de bombas mortíferas, quando todos ameaçam e ninguém executa, tenho vontade de viver longe, em um lugar onde não chegue o eco do mundo (Idem).

O retraimento, provocado pelo desagrado com a realidade e com o seu tempo, fez com que o escritor se entregasse vorazmente à nostalgia do tempo por ele cultuado: o passado familiar [1].
Encontrava em sua casa o que denominava “refúgio” e, nesse ambiente, cercado de móveis, tapetes e relíquias familiares, o apaixonado colecionador de antigüidades escrevia seus romances [2].
Assim, o escritor trocou o “eco do mundo” pelos ecos do passado: “Em casa há alguns móveis antigos e às vezes ouço as histórias que eles me contam. Uma poltrona, um velho quadro, uma lembrança qualquer do passado me faz companhia e me oferece temas para meus livros” (Rey, 1955); “[...] eu via neles [retratos e móveis] os gestos e os sentimentos de seus antigos possuidores, que conheci já velhos e alguns apenas revivendo na lembrança daquelas que representavam para mim todo um mundo desaparecido” (Rego, 1949).  São esses objetos de memória que evocam do passado familiar os gestos, os gostos, as imagens e as histórias apreendidas e transmitidas no decorrer de tantas vidas.
De suas tias e avós, herdara as histórias da família nobre e abastada do tempo do Império: um passado, não muito distante, repleto de glórias, riquezas e tragédias. Das pesadas caixas de música, melodias suaves reanimavam as vozes de sua infância que lhe contavam as histórias de índios selvagens, escravos rebelados, superstições de pretas velhas, palácios luxuosos, países distantes e casamentos de contos de fada. Histórias entranhadas no jacarandá antigo, gravadas nos brasões dos antepassados: em cada peça de família, fragmentos de vidas passadas e ruínas de um mundo desaparecido.
As velhas fotografias de família faziam brotar imagens de palmeiras imperiais, que cercavam a casa-grande e sinalizavam ao viajante o fausto e a grandeza da fazenda de café. O luxo sombrio e austero dos moradores da mansão era relembrado pelos móveis que rodeavam o autor.
Na atmosfera centenária da casa de Laranjeiras, os objetos de culto ao passado familiar engendravam a matéria-prima de seus romances. Dentre eles, via-se o retrato a óleo da menina que parecia dormir.
A pintura do “anjinho” de vestido branco e coroa de rosas representava uma das tias maternas de Cornélio. Pintado por um artista francês que se hospedara na fazenda do Cortiço, propriedade da família do escritor em Sapucaia, interior do Estado do Rio de Janeiro, o quadro retratava a menina em seu leito de morte e era uma das paixões do escritor. Para ele, foi escrito o romance A menina morta:

[...] Quando vivia solitário em minha casa, ela [a menina morta] me entristecia e povoava meus dias com sua presença patética. Tinha o hábito de dizer que ela ‘vivia em mim’ e que um dia escreveria o seu romance [...] Sua presença tornou-se quase real ao meu lado, e ouvi que murmurava muitas coisas em meus sonhos (Penna, 1955).

A escrita para Cornélio tornava-se, então, parte de um nostálgico empreendimento: através dela o escritor realizava uma viagem pela memória da família semelhante à “viagem através da carne” de que nos fala o poema “Retrato de família”, de Carlos Drummond de Andrade:

os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha idéia de família
viajando através da carne (Andrade, 1963, p. 59).

Pela via da memória, Cornélio Penna resgatava o passado familiar que, como o poema, encontrava-se na tênue fronteira onde “memória e presente mutuamente se enlaçam, se alimentam” (Costa Lima, 1968, pp. 221-22), fronteira que o escritor passava a habitar e de onde retirava os elementos para sua ficção. Nela, tempo, espaço e circunstâncias eram contaminados pela marca da perda.

Sob o signo da melancolia

Se pensarmos em uma lógica capaz de organizar a história de vida de Cornélio Penna, encontraremos a da melancolia. É pela experiência da perda que os principais acontecimentos da vida do escritor se organizam: perdas familiares, perda de ambições, perda de saúde.
É também pela via melancólica que Penna se identifica com o mundo que o cerca: “O meu dia, todos os meus dias, assim como toda minha vida agora, resume-se a uma só palavra: ocaso” (Penna, s/da).
Tradução do instante suspenso, o crepúsculo, imagem-síntese evocada pelo autor, é um signo melancólico por excelência. É ele que simboliza a “hora da saudade e da melancolia” (Chevallier, 1998, p. 300). Representação do espaço fronteiriço, onde as divisas da noite e do dia se misturam, o crepúsculo é o instante no qual passado e presente deixam de ser distinguidos. Habitado pelo escritor, ele é o local dos fantasmas familiares. Uma espécie de refúgio em que Cornélio podia contemplar a beleza nostálgica de um passado idealizado: um tempo anterior às perdas que marcariam para sempre a trajetória de sua família. 
Nascido a 20 de fevereiro de 1896, em Petrópolis, Cornélio de Oliveira Penna foi o quinto filho do casal Manuel Camilo de Oliveira Penna, médico, e D. Francisca de Paula Marcondes de Oliveira Penna. Tinha um ano de idade quando seu pai se transferiu, com toda a família, para Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais. Dr. Manuel Camilo, filho do respeitado Coronel João Camilo de Oliveira e de Maria Rosa de Oliveira Pena, irmã do presidente Afonso Pena, nasceu na imponente Fazenda do Girau, propriedade que mais tarde se tornaria sede da mineração da Itabira Iron. Era o filho ilustre que retornava à pequena cidade mineradora com a finalidade de lá se estabelecer e montar sua clínica.
Após um ano na nova cidade, uma tragédia familiar se desencadeou: a morte súbita de seu pai, logo seguida por mais duas importantes perdas (avó e tia maternas). Órfão aos dois anos de idade, mudou-se com a família para Pindamonhangaba, onde permaneceram por um curtíssimo tempo, pois, ainda no ano de 1901, a família seguiu para Campinas, cidade em que o escritor passou sua infância e adolescência, na qual também ocorreu outro episódio dramático: a perda da visão direita enquanto brincava com um canhão. Referindo-se aos anos conturbados que marcaram sua infância, o escritor rememorou a antiga e triste história materna:

Tendo casado em Paris, seguira para Itabira do Mato Dentro, e, depois de oito anos de felicidade, meu pai morrera subitamente. Desorientada, tentou refugiar-se junto de minha avó, que ficara em Honório Bicalho, onde estava a mineração de ouro de minha família materna, e, na estação, soube que ela falecera na véspera. Quis então ir para junto da irmã mais velha e sua madrinha, em São Paulo, mas esta também morreu no mesmo mês... e assim se fechara sobre ela uma lousa inviolável de renúncia e de tristeza, que nunca podemos vencer, durante tantos anos de sobrevivência (Condé, 1953, apud Adonias Filho, 1958, p. XXVI). 

A mãe, D. Francisca, é recordada pelo escritor como uma figura frágil, de olhos distantes e passos silenciosos. Cornélio relembrava também o espesso luto que parecia envolver toda sua família numa espécie de sono profundo. Sobre a infância o autor escrevia: “[...] minha infância, luta constante contra a melancolia, a inquietação sem causa, o sentimento de culpa que eu tinha da desgraça que pesaria sempre sobre o nosso lar, sem que eu o pudesse conjurar...” (Penna, s/db).
Em suas entrevistas, o escritor afirmava ter sido uma criança triste e solitária que, desde cedo, encontrou refúgio na leitura de folhetins e romances. Segundo a reportagem de Renard Perez Cornélio “lia tudo que lhe chegava às mãos, desde o ‘tico-tico’ a Perez Escrich e Alexandre Dumas” (Perez, 1955). [3]
O futuro escritor também adorava escutar as velhas histórias familiares contadas pela mãe, histórias que o transportavam para um mundo desaparecido e que lhe faziam companhia nos momentos de solidão:

[...] desde que me conheço, ouvia as histórias de Itabira, de Pindamonhangaba e das fazendas de meus avós e tios [...] eu guardava tudo com avidez, sem demonstrar como era funda a emoção que me provocavam aqueles episódios sem uma ligação aparente entre eles, que eu recolhia e depois ligava com um fio inventado por mim (Adonias Filho, 1958, p. XXXIX).

As lembranças de Itabira sempre exerceram uma forte influência na trajetória de Cornélio Penna. Palco do drama familiar, a velha cidade mineradora, também foi objeto de uma apaixonada admiração. Nas palavras de Carlos Drummond de Andrade, o autor de A menina morta “nasceu, viveu e morreu interiormente” (Andrade, 1958) em Itabira.
Em entrevista a Ledo Ivo, Cornélio Penna falava que a motivação irresistível que o impulsionou para a feitura de Fronteira, seu début nas letras, partiu do desejo de ver Itabira retratada em um romance:

[...] a vida da cidade, o espírito belo e sombrio de seus habitantes, as histórias de [...] invencível coragem no drama que tudo lá representa, tinham ficado gravadas em meu cérebro e em meu coração de tal forma, toda minha vida, que só pude me libertar de sua obsessão escrevendo. Pedi a muitos escritores que o fizessem [...], mas não consegui interessar a nenhum deles, e assim foi que escrevi Fronteira, que consegui publicar em 1935, e que representou para mim apenas um desabafo, uma confidência, ou melhor, uma confissão pública, a compreensão de Itabira (Ivo, 1958a, p. LXII).

 No trecho que selecionamos, Penna afirmava que a escrita do romance foi provocada por um desejo íntimo, um desabafo, uma confidência, uma confissão pública de alguém que desejava ver retratada a matéria que o obsedava. Pelo desejo de contar a história da cidade estagnada, feita de ruínas e silêncios, de cuja atmosfera brotavam fantasmas, recordações e história familiares, o autor encontrava a motivação inicial para a escrita de seus romances.
 Sua matéria ficcional, portanto, emanava de um tempo familiar progressivamente habitado, de um passado insistentemente rememorado que ganhava a forma da pequena cidade mineradora: “Cornélio convertera Itabira em matéria mítica. Ela então se tornava o véu, que não encontrava na tradição literária, indispensável para elaborar a realidade de que não se desligava: a realidade do passado de suas tias e avós” (Costa Lima, 2005, p. 20).
O mergulho nas memórias ancestrais, com o passar dos anos, tornava-se mais profundo e fazia com que o autor, como já foi observado pelo crítico Luiz Costa Lima, recuasse cada vez mais no tempo retratado por sua ficção.
Segundo o crítico, não só vemos o tempo histórico ser invertido, isto é, retroceder gradualmente na cronologia de seus quatro romances, como também é possível observarmos mudanças no que diz respeito à localização espacial de suas narrativas, ou seja, o lugar onde a ação se desenrolará. Sobre esta última característica da prosa corneliana, o crítico chama atenção para o fato de o autor realçar progressivamente a fazenda como núcleo ficcional:

[...] a cidadezinha [...] tende a diminuir de importância, até se converter, em A menina morta, em mero lugar de passagem, Porto Novo, ao passo que a fazenda, de ingresso mais tardio, tornar-se-á o ponto central com o Grotão. Esta ordem diversa de precedência indica a direção da matéria ficcional corneliana: direção ditada pela memória na (dolorosa) procura de chegar à origem da razão (esquiva) da própria procura (Costa Lima, 2005, pp. 73-74).

Sabemos que as histórias ouvidas na infância ofereciam a Cornélio Penna um material riquíssimo a ser explorado ficcionalmente. Assim, nessa viagem ditada pela memória, a ficção corneliana avançava até o passado distante de suas avós, de onde retirava os elementos propulsores de sua ficção. Se em A menina morta acompanhamos uma espécie de trabalho de antiquário, um trabalho paciente que reconstituía com perfeição o cotidiano de uma fazenda de café escravocrata às margens do Vale do Paraíba em seus tempos de prosperidade, também somos apresentados à economia do texto corneliano e sua “incômoda riqueza”. O tempo de opulência – sugerido nas páginas de A menina morta pelo desfile de móveis aristocráticos, objetos de arte, louças gravadas com os brasões da família e produtos importados da Europa – convive com o mal que atinge toda a comunidade do Grotão.
Durante a narrativa, acompanhamos os detalhes da vida cotidiana, as riquezas advindas do trabalho escravo e a vida em ponto-morto das personagens da casa-grande, dados que nos revelam o dia-a-dia em uma comunidade onde a tensão é permanente.
Assim, em A menina morta somos apresentados a um universo apavorante. A viagem melancólica é abortada: ao contrário de resultar em uma espécie de idade do ouro familiar, o relato ficcional se torna sombrio e angustiante. O mergulho melancólico de Cornélio Penna, como afirma o crítico Luiz Costa Lima, em vez de justificar a melancolia, isto é, a mostrar fundada num passado louvável do ponto de vista biográfico, a mostra assentada em um tempo de horror:

De alguém que vivia entre relíquias [...] e lembranças, podia-se esperar que fosse um emérito melancólico, que ressaltasse as glórias imperiais da família abastada. Alguém, em suma, que, vivendo dos restos da passada fortuna expusesse as raízes de uma vida de luxo e riqueza. Em vez disso, os fantasmas da memória se solidificam em um mundo monstruoso, em que a ordem da próspera fazenda mal encobre o terror que circula pelas frestas, quartos e vidraças (Costa Lima, 2005, p. 15).

Sobre a aparente prosperidade do Grotão esconde-se um tempo de horror fundado na irracionalidade, a escravidão, e é exatamente nesse ponto que vemos a originalidade do escritor surpreender: sua ficção impele o leitor de A menina morta para um tempo de opulência, que, na verdade, se revela como um mundo de pesadelo.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_____. Antologia poética. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor,1963.
BEIRA-MAR. “Uma entrevista com Cornélio Pena, o extraordinário pintor de ‘Horas melancólicas’”. S/l, 31 de outubro de 1931.
_____. “Cornélio Pena”. S/l, 27 de outubro de 1934.
BESSA, Marcelo Secron. “Cornélio Penna, um escritor na contramão”. In: Revista Semear nº 4: Revista da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses. Rio de Janeiro: Instituto Camões PUC-Rio, 2000.
CÉSAR, Guilhermino. “Cornélio, o de Itabira”. S/l, 23 de novembro de 1974.
CHEVALLIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
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COSTA LIMA, Luiz. “O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond”. In: Lira e Antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
_____. O redemunho do horror: as margens do Ocidente. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
_____.  “Prefácio à 2ª edição”. In: O romance em Cornélio Penna. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, pp. 7-21.
CUNHA, Fausto. “A dor em câmara lenta”. In: A Manhã, Rio de Janeiro, 23 de julho de 1949a.
HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil (sua história). São Paulo: Edusp, 2005.
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_____. “Lembrança de Cornélio Penna”. S/l, 1º de março de 1958b.
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NOGUEIRA, Hamilton. “Cornélio Pena”. In: A Ordem, Rio de Janeiro, abril de 1958.
PACHECO, Ruth. “Fronteira, de Cornélio Pena”. In: Boletim Ariel, Rio de Janeiro, 6 de março de 1936.
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REGO, José Lins do. “Revelações de Cornélio Pena”. In: Tribuna de Petrópolis, Petrópolis, agosto de 1949.
REY, Marcos. “A vida não tem enredo”. In: O Tempo. São Paulo, 20 de fevereiro de 1955.
SCHMIDT, Augusto Frederico: As Florestas. Páginas de memórias. 2ª ed. Rio de janeiro: Topbooks, 1997.

NOTAS
[1] Chamamos atenção neste momento para aquilo que o crítico Luiz Costa Lima denomina inconsciente textual, isto é, os indicadores que existem no texto ficcional que não chegam à consciência do autor nem fazem parte do horizonte de expectativas de seu tempo (Costa Lima, 2003, pp. 323-325). No caso de Cornélio Penna, o refúgio no passado de tias e avós, sugerindo a vontade de o autor se desligar do tempo presente, não interromperá o diálogo com as questões de sua época. Pelo contrário, em A menina morta, por meio da tematização da violência, do interdito e da opressão, encontraremos uma potente reflexão ficcional acerca de questões atualíssimas para seu tempo.
[2] São várias as referências encontradas acerca da residência do autor. Algumas ressaltam a estranha atmosfera que fazia da moradia de Cornélio Penna uma mistura de convento e museu: “A casa [...] lembrava um pequeno convento [...] Era uma atmosfera tranqüila, sonolenta, indiferente ao que se passava lá fora” (Ivo, 1958b); os objetos “davam à sala de entrada um ar bolorento de museu [e criavam] uma atmosfera de romance inglês setecentista” (César, 1974); “Quando cheguei à sua casa [...] senti que penetrava na própria atmosfera de seus romances” (Perez, 1958). Outras chamam a atenção para o fascínio do autor pelos objetos familiares e suas histórias “[Cornélio] vive cercado de recordações naquela sua casa de Laranjeiras onde, por assim dizer, o tempo parou, tamanha é a força da ‘voz dos outros tempos’ que ecoa em suas salas” (Rego, 1949); “Tudo o que existe nas salas, quartos e corredores de sua residência tem uma história, que nasce sempre de sua infância, da lembrança dos parentes mortos, alguns enterrados em igrejas” (Ivo, 1945).
[3] Dentre seus escritores preferidos na adolescência, Camilo Castelo Branco merece um destaque especial, pois o escritor afirmava ter lido várias vezes as Novelas do Minho. Ao lembrar das leituras vorazes desses anos, Cornélio costumava contar com muita graça o impacto que lhe causara a leitura de Machado de Assis: “Um dia li Quincas Borba e fiquei trêmulo, comovidíssimo, certo de que era louco também” (Ivo, 1958a, p. LVII). 

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