domingo, 29 de julho de 2012

Acordar sentidos: o flamenco na poética cabralina

Por Luciana Messeder

O poema de abertura do livro Quaderna (1956-9), de João Cabral de Melo Neto, “Estudos para uma bailadora andaluza” é bastante representativo de um conjunto expressivo da poética cabralina: os poemas dedicados ao universo flamenco. Trata-se de uma temática muito cara ao autor que, a partir do livro Paisagens com figuras (1954-5), aparecerá com toda força na obra do escritor pernambucano.
Assim, no universo intenso e explosivo do flamenco, a poética cabralina que, geralmente, “associa a música a um tipo de recepção distraída, dolente’” (Süssekind: 1998, p. 32), concederá aos cantadores e às bailadoras lugares de destaque. Seja pelo cante, como no poema “A palo seco” (“cante que não se enfeita,/ que tanto se lhe dá; é cante que não canta,/ cante que aí está.”); seja pelo baile, como na letra de “Uma bailadora sevilhana” (“Dançar flamenco é cada vez;/ é um fazer, é um faz, nunca um fez”), ou como homenagem a grandes cantadores, como é o caso de “A Antonio Mairena, cantador de flamenco” (“o cantador no alto do mastro/ por sua voz levantado,/ só tem enquanto voz tensa,/ na medida em que sempre cresça”).
Nos poemas citados, podemos vislumbrar que a representação cabralina do universo flamenco é muito próxima de seu método poético: Cabral vê no flamenco – essa dança de atitudes sóbrias, contundentes – uma dicção tensa, seca, explosiva. Uma dicção desflorida que com sua dureza, energia e dinamicidade deseja acordar sentidos:

“O meu esforço na vida é me fazer acordar. O que eu procuro num remédio ou num ator que leio não é que faça adormecer minha consciência, como o romântico, ou essa poesia de cantilena (…) eu não quero ser embalado, quero ser acordado. De forma que eu procuro aquelas coisas que aumentem minha consciência da realidade, consciência de mim mesmo e do que eu estou fazendo. Eu procuro uma poesia que fosse como uma cafeína” (Melo Neto apud Süssekind: 1998, p. 32).

A natureza sonora observável no poema “Estudos para uma bailadora andaluza” é um indicador de que o poeta ao construí-lo, frisou e imprimiu com bastante precisão a marcação da dança flamenca. Um traço marcante, comum em todas as seis partes (estudos) do poema é justamente a abundância de consoantes oclusivas. Estas, além de sugerirem ruídos ou objetos que os produzem (faísca, pedra, fogo), também convêm à idéia de força e intensidade (debela, protesta, cavalgado, taconeando, cavando, robustobatendo-a, talhada, rompente). Tal como a prática do flamenco, o poema nos impõe uma dicção dinâmica, explosiva, precisa.
Nesse sentido, a reprodução de batidas, sugerindo a marcação da dança flamenca, em toda a extensão do poema, faz com que  possamos verificar a existência de correspondência entre significante e significado, ou seja, de “motivação sonora”.
O poema passa a ser um trabalho de engenheiro, de construtor, cabendo ao poeta construir a poesia a partir de elementos materiais, objetivos. A “lógica arquitetural” cabralina permite, de acordo com o crítico Marcos Siscar “colocar em primeiro plano uma certa idéia do signo poético motivado, dando destaque às potencialidades perfomativas de um ‘dizer’ que coincide com um ‘fazer’” (Siscar: 2002, p. 153).
“Estudos para uma bailadora andaluza” potencializa a relação representação poética/linguagem: o poema é construído por meio de identificações, aproximações, “estudos”, como aponta o próprio título. Todo o poema é gerado pela tensão entre a apresentação da dança e a (in)capacidade de representá-la.
Essa tensão se configura no trabalho de arte de João Cabral de Melo Neto como uma reflexão acerca das potencialidades da linguagem poética. Nas palavras do crítico Luiz Costa Lima:

“(…) João Cabral, ao mesmo tempo, chama a atenção para o núcleo a ser extraído do poema (…) como teoriza sobre sua própria poesia. Pois à atitude perante a imagem corresponde em Cabral, de modo mais vasto, uma atitude perante a linguagem. Do mesmo modo que o esforço do autor está em tornar válida a imagem depois de quebrar seu ilusionismo possível, quanto à linguagem essa intenção se exprimirá no esforço de fazer com que ela decifre, ao mesmo tempo que se diga a si própria como linguagem. A linguagem de Cabral é sempre acompanhada de uma reflexão sobre a linguagem. De uma metalinguagem” (Costa Lima: 1968, p. 330).

Em “Estudos…” a técnica da retificação aparece com toda a sua intensidade. Podemos observar que o primeiro verso do estudo no 1 contém uma afirmação imprecisa (“Dir-se-ia, quando aparece”) (v. 1, 1). Nele encontramos o verbo dizer flexionado no futuro do pretérito ao lado do se apassivador. Num só verbo acumulam-se as idéias de imprecisão e indeterminação. Um pouco mais adiante (v. 6, 1) temos novamente a mesma forma verbal, agora acompanhada por dois pontos (“dir-se-ia:”). Estes enumeram (vv. 7-20, 1) uma série de identificações da dança da bailadora com os atributos do fogo. Observamos, então, que o verbo elocutivo dizer (nos dois usos mencionados) não afirma um fato. É apenas uma suspeita, uma suposição. O mesmo se dá, por extensão, com o uso do verbo adivinhar. A forma verbal “adivinha”(v. 14, 1) também é acompanhada por dois pontos e uma nova enumeração se inicia.
No entanto, a comparação é quebrada na 6a estrofe: o verbo elocutivo desmentir afirma a impossibiliade da comparação, afirma o fato. O verso seguinte, “que o fogo não é capaz”(v. 23, 1), a primeira negativa do poema, quebra a expectativa da comparação com o fogo. Dessa forma, o poema cotinua a sua enumeração, por meio de comparações negativas, que traduzem a incapacidade do fogo de partilhar os mesmos atributos da bailadora.
Dessa maneira, mesmo a platicidade do fogo vislumbrada por seus gestos – folhas, cabelos, língua –; pelo seu corpo – “carne em agonia” (v. 10, 1); “carne de fogo, só nervos” (v. 11, 1); “carne toda” (v. 12, 1), “carne viva” (v. 12, 1); e pelo seu caráter – “gosto de extremos” (v. 15, 1); “natureza faminta” (v. 12, 1); “gosto de chegar ao fim” (v. 30, 1),  “atingir a própria cinza” (v. 20, 1), não é capaz de configurar a dança da bailadora. Esta, ao contrário do fogo, é capaz de “arrancar-se de si mesm[a]” (v. 25, 1), de “acender-se estando fria”(v. 30, 1), de “incendiar-se com nada” (v. 31, 1), de “incendiar-se sozinha” (v. 32, 1).
Observando os verbos arrancar, acender, incendiar, podemos afirmar que a idéia de tensão é colocada em primeiro plano. O tom explosivo, inflamado dos verbos citados, sugere força e intensidade. A gradação acender/incendiar (contrastando com “fria”, “nada” e “sozinha”) tem por finalidade, justamente, ressaltar esse caráter autosuficiente da bailadora. Ressalte-se ainda que o realce dessa autosuficiência ainda é acentuado pelo uso reflexivo de tais verbos.
O estudo no 2 também privilegia a tematização da tensão. Nele a ocorrência das palavras “nervo”, “tensão”, “energia” intensifica as relações de força entre a bailadora e a dança (ambas égua e cavaleira), derivando destas o campo semântico: carregada, carrega, encrespa, montado, monta, debela, dominado, ressente, mandado, obedecendo, protesta, rebela, cavalga, cavalgado, inerva. Com o uso dos enjambements o poeta alcança uma continuidade ininterrupta, dinâmica: “há uma tal conformidade/entre o que é animal e é ela,// entre a parte que domina/ e a parte que se rebela,/ entre o que nela cavalga/ e o que é cavalgado nela”(vv. 19-24, 2).
No estudo no 3, a idéia de movimento continua intensa. Nele, o corpo que dança continua em primeiro plano. E sua dança nunca deixa de ser objetiva. Dessa maneira, na telegrafia do taconeo observa-se a atenção e a energia de quem pronuncia ativamente as respostas por meio das batidas de sua dicção desflorida. A fim de representar essa telegrafia o poeta serve-se de palavras que a configurem (mensagem, linha, linguagem, código, morse, linear, ponto, traço, concisa, preto e branco).
No estudo no 4 assistimos a uma série de comparações, respectivamente camponês, árvore, terra. Dentro desse complexo, a figura da bailadora é afirmada e sua natureza revelada por meio do contraste com a imagem da bailarina. Esta última representada como “ave assexuada e mofina” (vv. 13-4, 4), enquanto a bailadora, “uma árvore, firme na terra, nativa” (vv.17-8, 4). Aos movimentos aéreos da bailarina se contrapõem os da bailadora, que com seu “tornozelo robusto” (v. 11, 4) não pisa a terra, mas se planta nela.
O estudo no 5 sugere as posições inicial e final da dança flamenca. Ambas têm a bailadora no centro no palco. O centrar-se da bailadora é o início e o final da dança: como estátua, o livro de sua dança – “livros de iguais coberta e contra-coberta” (vv.3-4, 5) – encerra como capa, “capas iguais” (v. 30, 5) “com a figura desafiante”(v. 31, 5) de “estátuas acesas” (v. 32, 5).
Ao longo do estudo das primeiras cinco partes do poema, foi possível observarmos a comparação da bailadora com a imagem do fogo – “Porém a imagem do fogo/ é num ponto desmentida” (vv. 21-2, 1) –; ficamos sabendo que “é impossível traçar/nenhuma linha fronteira”(vv. 29-30, 2); entre o que é égua e o que é cavaleira em sua dança; que a dicção “tão morse e tão desflorida” (v. 28, 3) das pernas da bailadora deve ser telegrafia; que a bailadora “se orgulha de ser terra/ e dela se reafirma,/batendo-a enquanto dança/para vencer quem duvida” (vv. 29-32, 4) e ainda que sua dança parece desafiar “a ver quem é que a modela” (v. 20, 5) e “a quem está na assistência” (v. 26, 5).
Mas a imagem que unifica todos os andamentos do poema, só nos é apresentada no último estudo.
As retificações acumuladas levam à compreensão mais justa e encaminham o leitor para a verificação de um recurso que, embora presente em toda a composição, só será explicitado por João Cabral de Melo Neto no estudo no 6.
Nele, estudo-síntese, podemos assistir à dança da bailadora como se assiste ao “processo da espiga”: “Parece que sua dança,/ ao ser dançada, à medida/ que avança, a vai despojando/ da folhagem que a vestia” (vv. 5-8, 6), privando-a também de uma outra flora “a que seus braços dão vida e agonia”(v. 14, 6). Sua dança ao ser executada, despoja-se, priva-se de adornos.
Dessa maneira, “embora tudo/ aquilo que ela leva em cima,/ embora, de fato, sempre/ continue nela a vesti-la” (vv. 17-20, 6),  ainda que terminada a dança, sua roupa persista, “a imagem que a memória/ conservará em sua vista/ é a espiga, nua e espigada,/ rompente e esbelta, em espiga” (vv. 29-32, 6). Esta é a imagem final da bailadora e de sua dança. É a imagem que a memória conservará: uma imagem que se basta. A espiga é referência para ela mesma: seus qualificativos são auto-referenciais (nua, espigada, rompente, esbelta). Imagem dura, seca, desfolhada, perfurante, a espiga é capaz de simbolizar formalmente e tematicamente a obsessão da poética cabralina: a construção de uma poesia a partir de elementos concretos, objetivos.
Cabral objetiva a linguagem para torná-la amplificadora, expressiva. A imagem final da bailadora – “a espiga, nua e espigada,/ rompente e esbelta” (vv. 31-2, 6) –, bem como o processo que possibilita esse “descascamento”, são muitos caros à representação poética cabralina: a poesia de João Cabral de Melo Neto é a busca da síntese por meio da palavra despida.


Referências Bibliográficas

COSTA LIMA, Luiz. Lira e Antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. 2a ed. revista: Rio de Janeiro, Topbooks, 1995.
MELO NETO, João Cabral. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.
SISCAR, Marcos. “A máquina de João Cabral”. In: Inimigo Rumor. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2002, no 13.
SÜSSEKIND, Flora. “Com passo e prosa: voz, figura e movimento na poesia de João Cabral de Melo Neto”. In: A voz e a série. Rio de Janeiro: Sete Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

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